Home EstudosLivros A Barca de Gleyre, de Monteiro Lobato

A Barca de Gleyre, de Monteiro Lobato

by Lucas Gomes

A Barca de Gleyre

, obra em dois volumes, reúne a correspondência
ativa de Monteiro Lobato com o escritor mineiro Godofredo Rangel entre 1903 e
1943. Relata seus sonhos, as lutas do cotidiano, as realizações e frustrações
de seu trabalho de editor, nas primeiras décadas do século 20.

A análise desse rico material, organizado pelo próprio Lobato, permite discernir
os contornos da auto-imagem que o escritor pretendia construir para a posteridade.
As missivas, que se iniciam ainda durante a época em que era estudante na Faculdade
de Direito de São Paulo, fornecem dados a respeito de sua formação intelectual,
atividades como escritor, editor, empresário e aspectos da vida pessoal. O título
da obra constitui-se num importante indício para compreender a amargura do escritor
pouco antes de sua morte.

Entre as múltiplas facetas de Monteiro Lobato, a história da literatura brasileira
privilegia, de um lado, o criador da mais importante obra infantil em nosso país,
conhecida a partir de 1921. De outro, o regionalista, voltado para o atraso e
a decadência do mundo rural. Por ser um nacionalista ferrenho, hostil à importação
infrene das idéias européias, em particular das francesas, foi confundido com
um intelectual retrógrado e passadista, incapaz, portanto, de compreender a modernidade
e rotulado, ainda, de algoz de uma das mais talentosas pintoras do início do século
e inimigo número um da Semana de 22. Essa visão é colocada em xeque em A Barca
de Gleyre
(1944).

Durante o período que se corresponderam, os dois amigos trocaram impressões sobre
a literatura nacional e estrangeira. Em mais de trezentas cartas, destaca-se a
presença da literatura francesa de todos os tempos, abrangendo mais de noventa
autores citados. Essa dissertação pretende mostrar, a partir das análises das
missivas, a relevância da cultura francesa na formação do escritor Monteiro Lobato.
Refutamos, num certo sentido, a idéia de autor xenófobo e anti-galicista. Ao contrário,
suas cartas revelam um leitor e “crítico” maduro e original, sustentando
posições que seriam endossadas por muitos críticos atuais. Entre a plêiade de
autores abordados, enfocamos nossa pesquisa em alguns prosadores do século XIX,
pois se situam entre os mais apreciados não apenas por Lobato e Rangel, mas por
mais de uma geração de escritores brasileiros. Finalmente, detemo-nos na contribuição
de Guy de Maupassant na poética do conto lobateano.

Textos escolhidos

Trecho I
– São Paulo … 1903

“Não és capaz,
nunca, de adivinhar o que estou comendo. Estou comendo … Tenho vergonha de
dizer.
Estou comendo um companheiro daquilo que alimentava S. João no deserto: içá torrado!
Sabe, Rangel, que o içá torrado é o que no Olimpo grego tinha o nome de ambrosia?
Está diante de mim uma latinha de içás torrados que me mandam de Taubaté. Nós,
taubateanos, somos comedores de içás. Como é bom, Rangel! Prova mais a existência
do Bom Deus do que todos os argumentos do Porfírio Aguiar. Só um ser Onipotente
e Onisciente poderia criar semelhante petisco!”

Trecho II
– Taubaté, 28.12.1903
Rangel:

“Escrevo ao pingar duma chuva miúda e sem fim que nos alaga há dois dias.
As ruas são passagens de lama bem amassadinha pelas rodas dos carros e patas dos
animais. Sair é um impossível, e chega a ser rasgo de ousadia pôr o nariz fora
da janela. Estamos encarcerados numa prisão de fios de chuva _ coisa mais impressionante
que grades de ferro. Leio, leio interminavelmente. Meus olhos já estão cansados.”

Trecho III
-Taubaté, 4 de “Bruno”de 1904
Rangel:

“Tua carta é um atestado da tua doença: literatura errada. Julgas que
para ser um homem de letras vitorioso faz-se mister uma obsessão constante, uma
consciente martelação na mesma idéia – e a mim a coisa me parece diferente. Tenho
que o bom é que as aquisições sejam conscientes, num processo de sedimentação
geológica. Qualquer coisa que cresça por si, como a árvore, apenas arrastada por
aquilo que Aristóteles chamava entelequia _ e que em você é o rangelismo e em
mim lobatismo. Deixa-te em paz, homem, não tortures assim o teu pobre cérebro.”
( …)

Trecho IV –Taubaté
2.6.1904

“Estou prestes
a fechar o meu curso. Entro na “vida prática” em dezembro e creio
que realizarei o meu sonho: ser fazendeiro. A minha vida ideal ( isto é, de
idéias) está a pingar o ponto final. Vou morrer _ vai morrer este Lobato das
cartas. E nascerá um que te fale em milho e porcos, e te dê receita para acabar
com o piolho das galinhas.
Está um frio de fim de vida. Meus dedos enregelam. Vou sair, andar, tomar sol.
Adeus.” Lobato

Trecho V
– S. Paulo, 15.11.1904

Rangel:

“É cheio do
passado que te escrevo. Imagina que fui ao Rink (coisa que não conheces: patinação)
e lá encontrei numa roda de quatro a moça mais bela que a Natureza ainda produziu.
Bela, fina, elegante…
Estes adjetivos já não dizem nada por causa dos abusos do Macuco. Sabe lá o
que é o belo, Rangel? É o que alcança uma harmonia de formas absolutamente de
acordo com nosso desejo. Se um mínimo senão na asa de um nariz rompe de leve
essa harmonia, a criatura pode ser linda, bonita, encantadora – mas bela não
é. Pois aquela moça era bela, Rangel. Chamava-se nos meus 14 anos, belita, Isabelita
– Isabel. Foi o meu primeiro amor, em Taubaté.
Mas falemos em coisas profanas. Li o teu último artigo… Nunca viste reprodução
dum quadro de Gleyre, Ilusões Perdidas? Pois o teu artigo me deu a impressão
do quadro de Gleyre posto em palavras. Num cais melancólico barcos saem; e um
barco chega, trazendo à proa um velho com um braço pendido largadamente sobre
uma lira – uma figura que a gente vê e nunca mais esquece (se há por aí os Ensaios
da Crítica e História do Taine, lê o capítulo sobre Gleyre). O teu artigo me
evocou a barca do velho. Em que estado voltaremos, Rangel, desta nossa aventura
de arte pelos mares da vida em fora? Como o velho Gleyre? Cansados, rotos? As
ilusões daquele homem eram as velas da barca – e não ficou nenhuma. Nossos dois
barquinhos estão hoje cheios de velas novas e arrogantes, atadas ao mastro da
nossa petulância. São as nossas ilusões. Que lhes acontecerá? ” (…)

Você me pede um conselho e atrevidamente eu dou o Grande Conselho: seja você
mesmo, porque ou somos nós mesmos ou não somos coisa nenhuma. E para ser si mesmo
é preciso um trabalho de mouro e uma vigilância incessante na defesa, porque tudo
conspira para que sejamos meros números, carneiros de vários rebanhos – os rebanhos
políticos, religiosos, estéticos. Há no mundo ódio à exceção – e ser si mesmo
é ser exceção.

Trecho VI
– Taubaté, 30.12.1904
Rangel:

“Aqui no exílio
a madorra é um mal ambiente que derruba até os mais fortes. Exílio, Rangel,
pura verdade! Saltar da libérrima vida estudantina de S. Paulo e cair neste
convencionalismo de aldeia, com trabalhos forçados… Sinto-me rodeado de conspiradores;
todos tramam o meu achatamento. Tudo quanto mais prezávamos _ o nosso individualismo,
etc, é crime de lesa-aldeia, de que o vigário, os parentes e as mais “pessoas
gradas”nos querem curar. O ideal é fazer de nós mais uma “pessoa grada”,
mais um “cidadão prestante”. É arredondar-nos como um pedregulho,
lixar-nos todas as arestas _ as nossas queridas arestas! Um homem aqui só fica
bem “grado”quando se confunde com todos os outros e é irmão do Santíssimo
Sacramento. (…)
Logo que cheguei ( que cheguei “formado”!) mimosearam-me com uma manifestação;
foguetes (Taubaté não faz nada sem foguetes), a banda de música, molecada atrás
e oito discursos, nos quais se falou em “raro brilhantismo”, “um
dos mais”, “as venerandas arcadas”e outras cacuquices que tive
de aguentar de pé firme em casa de meu avô. Eu percebia o jogo: a manifestação
era mais dirigida a ele do que a mim, porque ele é um grande visconde e eu não
passo dum simples “neto de visconde”. (…)
Não imaginas a estranheza da minha emoção quando estourou lá longe o primeiro
foguete e alguém ao meu lado disse: “É a manifestação que vem vindo.”
Um foguete soltado por minha causa…” (…) Do teu desolado Lobato

Trecho VII –
Taubaté, 1907

Rangel:

Estou noivo. Pedi no dia 12 a obtive a 15 a mão de Purezinha, filha do Dr.
Natividade que te examinou em Aritmética no Curso Anexo, minha prima longe, professora
complementarista, loura, branca como pétala de magnólia, linda. Combinamos casar
um dia.”

Trecho VIII
– São Paulo, 17.1.1920

Rangel:

Tens toda e não tens nenhuma razão. Tens-na no meu caso: não sou literato,
não pretendo ser, não aspiro a louros acadêmicos, glórias , bobagens. Faço livros
e vendo-os porque há mercado para a mercadoria; exatamente o negócio do que faz
vassouras e vende-as, do que faz chouriços e vende-os. E timbro em avisar ao leitor
de que não sei a língua. Se por acaso algum dia fizer outro livro, hei-de usar
letreiros das fitas: “Contos de Monteiro Lobato, com pronomes por Álvaro
Guerra; com a sintaxe visada por José Feliciano e a prosódia garantida no tabelião
por Eduardo Carlos Pereira. As vírgulas são do insigne virgulógrafo Nunávares,
etc.”

Trecho IX – S.
Paulo, 20.2.43

Rangel:

Pois é. Perdi meu
segundo filho, o Edgar, um menino de ouro, tal qual o Guilherme. Impossível
filhos melhores que os meus, e talvez por isso, foram chamados tão cedo.(…)
Eu não me desespero com mortes porque tenho a morte como alvará de soltura.
Solta-nos deste estúpido estado sólido para o gasoso – dá-nos invisibilidade
e expansão, exatamente o que acontece ao bloco de gelo que se passa a vapor.
(…)
E assim vamos também nós morrendo. Morrendo nos filhos, pedaços de nós mesmos
que seguem na frente. Morrendo nas tremendas desilusões em que desfecham nossos
sonhos.”

 
Trecho X
– S. Paulo, 27.10.43

Rangel:

Solto agora as minhas
cartas a você, e depois você solta as tuas a mim.
Outra coisa está me parecendo: que na literatura fiquei o que sou por causa dessa
correspondência. Se não dispusesse do teu concurso tão aturado, tão paciente e
amigo, o provável é que a chamazinha se apagasse. Você me sustentou firme na brecha
_ e talvez eu te haja feito o mesmo. Fomos o porretinho um do outro, na longa
travessia.

Trecho XI –
S. Paulo, Véspera de S. João, 1948

Rangel:

( …)
Tive a 21 de abril um “espasmo vascular”, perturbação no cérebro da
qual a gente sai sempre seriamente lesado de uma ou outra maneira. Depois de
3 horas de inconsciência voltei a mim, mas lesado. A principal lesão foi na
vista que no começo me impedia de ler sequer uma frase. As outras perturbações
ando agora eu a percebê-las: lerdeza mental, fraqueza de memória e outras “diminuições”.
Desci uns pontos.
Não é impunemente que chegamos aos 66 anos de idade.
O que eu tive foi uma demonstração convincente que estou próximo do fim – foi
um aviso – um preparativo.
E de agora por diante o que tenho a fazer é arrumar a quitanda para a “grande
viagem”, coisa que para mim perdeu a importância depois que aceitei a sobrevivência.
(…) Estou com uma curiosidade imensa de mergulhar no Além. (…)
Adeus, Rangel! Nossa viagem a dois está chegando ao fim. Continuaremos no Além?
Tenho planos logo que lá chegar, de contratar o Chico Xavier para psicógrafo
particular, só meu _ e a primeira comunicação vai ser dirigida justamente a
você. Quero remover todas as tuas dúvidas. Do Lobato

Com esta carta, meio
irônica, brincalhona, Lobato despedia-se do amigo Godofredo Rangel, escritor
como ele. Doze dias depois, morria durante o sono.
Em seu enterro, os estudantes saíram à rua, agitando faixas sobre a questão
do petróleo. E o já consagrado ator Procópio Ferreira, amigo pessoal, fez um
discurso onde proclamava:
“Agora, os sem-vergonhas poderão agir à vontade: morreu Monteiro Lobato!”

Posts Relacionados