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A distância entre nós, de Thrity Umrigar

by Lucas Gomes

A distância entre nós

, romance da jornalista indiana Thrity Umrigar, é apresentado ao leitor como
uma complexa encruzilhada de semelhanças e diferenças entre Bhima, a empregada, e Sera, a patroa.
Distantes pelas diferenças entre classes, elas se aproximam na condição de mulheres oprimidas, que
dedicaram as vidas para cuidar dos outros. O leitor acompanha o cotidiano das duas como senhoras maduras
e, na narrativa em flashback, percebe como estas existências vão se construindo juntas, sempre
alimentadas por uma relação de atração e repulsa.

A idéia geral sobre seu conteúdo reside na ambigüidade. Ambientado em Bombaim,
Índia, uma das civilizações mais antigas, populosas e miseráveis, ao mesmo tempo
que é uma das promessas de grande potência. Este é o cenário conflituoso do drama
de casais que se formam e que se desmancham, ou que se mantêm apesar de tudo reivindicar
a dissolução. Tudo sempre sob a ameaça da insensibilidade, da traição, da erosão
da família, com todas as traumáticas conseqüências econômicas e psicológicas sobre
a vida de cada um.

Como o título sugere, é o espaço que reina nessa narrativa, o espaço que separa ricos e pobres, velhos e
jovens na Índia de hoje. As biografias contidas nesse exemplar são expressões sublimes do amor e da dor
além do limiar da sanidade.

A tradição milenar, a diversidade cultural e todas as peculiaridades desse povo
propiciam uma incursão ao intrincado sistema de castas e um patriotismo velado
por uma repulsa ao mundo estrangeiro colonizador. O drama que conta a história
de três gerações de duas famílias interligadas por laços de fidelidade e por suas
memórias de sofrimento é tão pungente que, em determinados momentos, é preciso
manter uma distância, como sugere o título, para não se reproduzir as lágrimas
que escorrem de suas páginas folheadas.

A distância aborda a proximidade de realidades paralelas e paradoxais, como uma
mensagem para o mundo de que não importa nossas diferenças, de que somos unidos
pelo fato de estarmos todos fadados a errar e aprender com isso e de que nada
está tão ruim que não possa piorar.

Duas mulheres. Duas vidas. Dois destinos que poderiam ser um só. Sera e Bhima estão indiscutivelmente
ligadas, seja pelo silêncio ou pela cumplicidade. Mas ao mesmo tempo estão distantes, separadas por uma
fronteira intransponível. Como se o fio que as une não fosse forte o suficiente para agüentar uma
descarga elétrica, força que parece definir a sorte e a tragédia da patroa e da empregada. Duas vidas
marcadas pela decepção, enganadas pela traição, sujeitas a uma sociedade cruel cuja voz berra e marca a
fogo a existência dessas mulheres.

Em Bombaim, a empregada doméstica Bhima deixa seu barraco na favela onde mora
para cuidar da casa de Sera Dubash, onde trabalha há mais de vinte anos. No apartamento
de classe média alta onde a patroa viúva vive com a filha, Dinah, que está grávida,
e o genro, Viraf, Bhima lava a louça, esfrega o chão e corta as cebolas para a
omelete matinal do clã, lutando contra a dor nas mãos causada pela artrite e também
contra a preocupação que toma conta de seu pensamento: sua neta, Maya, também
está grávida. Mas, diferentemente de Dinah, ela não é casada e se recusa a revelar
a identidade do pai da criança.

Leia um trecho do livro

PRÓLOGO

A mulher magra de sári verde estava de pé nas pedras escorregadias e olhava as águas escuras em torno de
si. O vento morno soltava do coque alguns fios do seu cabelo ralo. Atrás dela, os sons da cidade ficavam
abafados, silenciados pelo contínuo bater da água em seus pés descalços. A não ser pelos siris que ela
ouvia e sentia correrem pelas pedras, estava completamente sozinha ali — sozinha com os murmúrios do mar
e a lua distante, fina como um sorriso no céu noturno. Até suas mãos estavam vazias, agora que as abriu
e liberou os balões cheios de gás, observando até que o último deles tivesse sido engolido pela escuridão
da noite de Bombaim. Suas mãos estavam vazias agora, vazias como seu coração, que era como um coco cuja
polpa tivesse sido arrancada.
Equilibrando-se com dificuldade nas pedras, sentindo a água que subia lambendo
seus pés, a mulher levantou o rosto para o céu negro retinto procurando uma resposta.
Atrás dela, a cidade perdida e uma vida que naquele momento parecia fictícia e
irreal. À sua frente, o limite quase imperceptível onde o mar se encontra com
o céu. Poderia subir de novo pelas pedras e pelo muro de cimento e reingressar
no mundo, participar de novo do ritmo louco, pulsante e imprevisível da cidade.
Ou poderia entrar no mar à sua espera e deixar que ele a seduzisse e a envolvesse
com seus sussurros íntimos.
Olhou de novo para o céu procurando uma resposta. Mas a única coisa que conseguia
ouvir era as batidas habituais de seu coração submisso…

1

Embora EstivEssE amanhEcEndo, dentro do coração de Bhima a escuridão permanecia.
Ela se vira para o lado esquerdo sobre seu fino colchonete de algodão estendido no chão e se senta
rapidamente, como faz todos os dias de manhã. Levanta a mão ossuda por cima da cabeça num bocejo, estica
o corpo, e um cheiro forte de mofo recende de suas axilas e invade suas narinas. Num instante de
preguiça, senta-se na beira do colchão, apóia os pés cheios de calos no chão de barro, com os joelhos
dobrados e a cabeça pousada nos braços cruzados. Naquele momento, está quase tranqüila, a cabeça
agradavelmente limpa e vazia das dificuldades que a esperam no dia de hoje e de amanhã e de depois de
amanhã… Para prolongar esse estado de graça sem ter que pensar em nada, estende a mão distraidamente
para a lata de fumo de rolo que mantém à beira da cama. Enfia um pedaço na boca e em seu rosto descarnado
surge uma protuberância que lembra uma bola de críquete.
O idílio de Bhima dura pouco. Na luz suave e delicada do novo dia, percebe a silhueta de Maya se mexendo
no colchonete que fica no canto esquerdo do casebre. A moça está dormindo e resmungando em seu sono,
emitindo sons suaves como que choramingando e, apesar de tudo, Bhima sente seu coração se derreter do
mesmo modo que acontecia quando amamentava Pooja, a mãe de Maya, muito tempo atrás. Impulsionada por
aqueles sons, que mais pareciam os de um cachorrinho, Bhima se levanta do colchão com um grunhido e vai
até onde sua neta está dormindo. Mas, no segundo que leva para cruzar o casebre, alguma coisa muda no
coração de Bhima, e o sentimento maternal e carinhoso de um momento atrás é substituído pela dureza e
impiedade que já a acompanham há algumas semanas.
Ela permanece de pé, olhando do alto para a moça adormecida, que agora está roncando baixinho,
inconsciente das fagulhas de raiva nos olhos da avó que examina o ligeiro crescimento de sua barriga.
“Um chute rápido”, Bhima diz a si mesma, “um chute rápido na barriga, seguido de outro, e mais outro, e
estará tudo acabado. Olha só para ela dormindo ali como uma prostituta sem-vergonha, sem nenhuma
preocupação no mundo. Como se não tivesse virado a minha vida de cabeça para baixo”. O pé direito de
Bhima mexe-se enquanto ela pensa nessa idéia. Os músculos da panturrilha se tensionam enquanto ela
levanta o pé do chão. “Seria tão fácil…” E, comparado com o que uma outra avó faria a Maya — um rápido
empurrão num poço aberto, uma lata de querosene e um fósforo, a venda para um bordel —, isso seria até
bastante humano. Desse modo, Maya sobreviveria, continuaria indo à universidade e poderia escolher uma
vida diferente da que Bhima sempre viveu. Isso era como deveria ser, como tinha sido, até que essa vaca
estúpida de coração mole, e agora com um barrigão, saísse por aí e acabasse grávida.
Maya deixa escapar um ronco alto, e Bhima volta a pôr o pé no chão. Agacha-se perto da garota para
sacudi-la pelos ombros e acordá-la. Quando Maya ainda freqüentava a universidade, Bhima deixava-a dormir
o mais que pudesse, fazia gaajar halwa para ela todos os domingos, o pudim de cenoura com amêndoas e
passas de que tanto gostava, e separava para a neta as melhores porções do jantar todas as noites. Se
ganhava alguma coisa de Serabai — um chocolate Cadbury ou aquele doce branco com pistache que vinha do
Ir㠗, guardava para dá-lo a Maya, embora, verdade seja dita, Serabai em geral lhe desse também uma
porção para a moça. Mas desde que Bhima soube da vergonha de sua neta tem feito a garota acordar cedo.
Nos últimos domingos, não teve gaajar halwa, e Maya não thrity umrigar pediu a sua sobremesa favorita.
Durante a semana, Bhima até mesmo mandou que a garota ficasse na fila para encher os dois potes d’água
na torneira comunitária. Maya protestou, alisando inconscientemente a barriga com a mão, mas Bhima
desviou o olhar e disse que, de qualquer maneira, os vizinhos logo acabariam descobrindo a sua desonra.
Então por que esconder?
Maya se vira no colchão, e seu rosto fica a alguns centímetros de distância de onde Bhima está acocorada.
Sua mão jovem e rechonchuda encontra a mão magra e enrugada da avó, e a moça se aninha junto dela,
segurando-a entre o queixo e o peito. Um fino fio de saliva escorre pela mão de Bhima. A velha sente o
coração amolecer. Maya sempre foi assim, desde bebê — carente, carinhosa, confiante. Apesar de todo o
sofrimento pelo qual passou ainda jovem em sua vida, Maya não perdeu a suavidade e a inocência. Com a
mão livre, Bhima afaga o cabelo lustroso e sedoso da menina, tão diferente do seu cabelo ralo.
O som de um rádio tocando baixinho invade o quarto, e Bhima resmunga uns palavrões. Geralmente, na hora
em que Jaiprakash liga o rádio, ela já está na fila da água. Isso quer dizer que está atrasada hoje.
Serabai vai ficar zangada. Essa menina burra e preguiçosa fez com que ela se atrasasse. Bhima solta
bruscamente sua mão das de Maya, sem se importar se o movimento vai acordá-la. Mas a garota continua
dormindo.
Bhima fica de pé, e, ao levantar, seu quadril esquerdo dá um estalo forte. Ela fica parada por um
momento, esperando pela onda de dor que se segue ao estalo, mas hoje é um dia bom. Nenhuma dor.

2

Sera Dubash olha para o cEsto de cebolas pendurado perto da janela e depois para o grande relógio da
cozinha. Atrasada de novo. Bhima está atrasada de novo. Sera vai realmente ter que conversar com ela
sobre esses atrasos diários. Afinal, Sera é responsável por aprontar e embalar o almoço de Dinaz e
Viraf toda manhã, e precisa de Bhima para ajudá-la. Ontem, os dois saíram para o trabalho dez minutos
atrasados porque a comida ainda não estava pronta. Sera teve que implorar a Viraf que não corresse, que
dirigisse com cuidado, lembrando a ele que sua mulher estava esperando o primeiro bebê.
— Tá bom, tá bom, mamãe — disse Viraf sorrindo, dando um beijo rápido no rosto de Sera. — Nós todos
sabemos que a barriga da Dinaz tem tatuada a palavra “Cuidado”.
Lembrar a gravidez de sua filha faz Sera pensar em Maya e ela sente uma onda de remorso pela idéia de
punir Bhima.
“Coitada da Bhima”, pensa Sera. Como se toda a sua vida não tivesse sido difícil o bastante, agora até a
própria neta é mais uma de suas preocupações. Quem poderia pensar que uma boa menina como a Maya fosse
dar esse mau passo? Fica imaginando o que teria acontecido na faculdade de Maya ontem, e a sua
impaciência em saber das últimas notícias faz com que ela olhe para o relógio novamente.
Sera solta um suspiro. Se há uma coisa que odeia é cortar cebola, mas para as omeletes dos dois ficarem
prontas a tempo, é melhor começar a fazer isso agora. Não dá para saber a que horas Bhima vai aparecer
hoje. Pega uma cebola de tamanho médio e, quando termina de tirar a pele translúcida, seus olhos
começam a lacrimejar. Pega a maior faca da gaveta. É melhor acabar com isso o mais rápido possível. Anos
atrás, Feroz apareceu de repente às suas costas enquanto ela estava trabalhando na cozinha e disse:
— Meu Deus, Sera, você corta cebola como quem está cortando uma cabeça. Que veemência!
— Preferiria cortar cabeças a cebolas — retrucou ela. — Talvez chorasse menos.
E Feroz riu. Isso foi nos velhos tempos, antes que ela tivesse perdido a capacidade de fazê-lo rir.
Sera ouve Viraf assobiando desafinado em seu quarto, e o som a faz sorrir. Imagina seu genro jovem e
bonito de pé diante do espelho de corpo inteiro arrumando a gravata, passando a mão displicentemente pelo
cabelo espesso. “Há algo de maravilhoso no som de um homem se aprontando para enfrentar o dia”, pensa
Sera. Diferentemente de Feroz, Viraf é barulhento e faz com que a sua presença seja sentida. Deixa cair
a escova de cabelo e resmunga baixinho “Droga!”; canta antigas canções dos Beatles no chuveiro; gargareja
vigorosamente quando escova os dentes; grita para Dinaz pedindo um novo vidro de xampu; entra
ruidosamente na cozinha com creme de barbear no rosto e uma toalha em volta da cintura. Feroz viveu como
um ladrão em sua própria casa, vestindo-se completamente no banheiro e depois saindo do quarto sem sequer
dar uma segunda olhada no espelho.
Sera quebra dois ovos, bate-os numa tigela, adiciona cebola, alho, coentro e uma pitada de pimenta na
mistura que chia ao tocar no óleo quente da frigideira. Uma já foi, agora tem a outra omelete para
fazer. Ela se pergunta se deveria fazer mais duas omeletes, uma para si mesma e outra para Bhima, mas a
idéia de ter que cortar mais cebolas a detém. Talvez faça omelete de alho para as duas. Pega a caixa de
pão e se lembra: nada de carboidratos. A dieta só de proteínas que Viraf e Dinaz estão fazendo faz com
que o planejamento do almoço fique difícil.
Olha na geladeira para ver o que mais poderia embalar para os dois.
— Poxa, mãe, muito obrigada. Era melhor você ter me dito. Eu podia ter cortado as cebolas para você — diz
Dinaz, entrando na cozinha.
— E ir para o trabalho cheirando que nem um restaurante parse? — observa Sera sorrindo. — Não, se quiser
realmente me ajudar, diga-me o que mais devo incluir para vocês, deekra, minha querida. Um ovo só não
basta…
— É mais que suficiente, na verdade.
— Ora, Dinaz, um ovo pode ser suficiente para você, mas não para o seu maridinho, querida — diz Sera. —
Ele é um homem que trabalha duro numa atividade em que é muito solicitado.
Dinaz faz uma careta.
— Ah, sei, só o seu querido genro é que trabalha muito, coitadinho. Sua filha inútil, por outro lado,
fica matando mosca o dia inteiro no trabalho.
— Calma aí, Dinaz, eu só estava dizendo…
Sera ouve os passos de Viraf e sente o cheiro de Old Spice antes de vê-lo.
— Absolutamente certo! — diz Viraf entrando na cozinha. — Mamma está certíssima! Pelo menos uma pessoa
nesta casa sabe me dar valor e vê o quanto trabalho para sustentar a minha família e o meu filho que vai
nascer.
Dinaz lhe dá um tapinha no braço.
— Cale a boca, yaar. Um menino mimado, é isso que a mamãe fez de você. Quando for a hora da promoção,
vamos ver quem ganha o maior aumento. — O sorriso dela desmente o tom ferino de suas palavras.
Viraf dá de ombros e revira os olhos.
— Isso é porque ela tem uma vantagem que é injusta, mamma.
O pobre do senhor Dalal está tão encantado com a beleza da minha esposinha que não poderia lhe recusar
nada. Ele se derrete todo sempre que tem que falar com ela. E, diante desses atributos femininos, que
chance tem um homem simples, pobre e decente como eu, com essa cara-de-mamão-macho? Que chance tenho eu?
As duas mulheres riem.
— Olhe só para ele, mamãe. Está querendo mais elogios — diz Dinaz.
Sera sorri quando o casal volta para o quarto a fim de terminar de se vestir. Está contente porque o
problema que surgiu entre eles há alguns meses parece ter desaparecido. Desde o dia em que Viraf e Dinaz
vieram morar com ela, após a morte de Feroz, tinha prometido a si mesma nunca interferir no casamento
deles. Afinal, quem melhor do que ela sabia como pode ser venenoso para um casamento a interferência de
uma sogra? Ainda assim, foi difícil ficar calada quando notou as pequenas rugas que tinham se formado no
rosto pálido e fino de Dinaz. Tinha que contar até dez quando Viraf dava a sua mulher grávida uma
resposta atravessada na mesa do jantar ou dizia alguma coisa tão sarcástica que Dinaz levava um momento
para levantar a cabeça do prato, precisando de uma pausa para se recompor, para rearrumar seu rosto numa
máscara sem expressão. Sera conhecia muito bem aquele olhar. Quantas vezes ela mesma ordenou aos seus
olhos que não se enchessem de lágrimas, por ocasião de alguma grosseria de Feroz, só para não permitir
que sua sogra Banu tivesse a satisfação de perceber que o filho tinha conseguido magoá-la. Pelo menos
Viraf não batia em Dinaz. Ela se consolaria e depois se odiaria pela fraqueza daquele pensamento, por ter
baixado tanto os seus padrões que a ausência de violência física houvesse se tornado a definição de um
bom casamento. Queria muito mais do que isso para sua única filha.
Sera abre a porta e basta uma olhada para a fisionomia abatida e encovada de Bhima para ela saber que a
missão do dia anterior tinha falhado. Ergue a sobrancelha interrogativamente e, em resposta, Bhima
balança devagar a cabeça de um lado para o outro. Isso é o que Sera mais gosta em Bhima — essa linguagem
sem palavras, essa intimidade que se desenvolveu entre ambas ao longo dos anos. Essa mesma ligação faz
agora com que perceba que Bhima quer esperar até que o casal saia para trabalhar antes de contar o que
aconteceu ontem. E Sera está contente com isso porque, para falar a verdade, não quer envolver sua filha
grávida nos problemas de Maya, não quer que a sombra da experiência infeliz de Maya se abata sobre a
felicidade da gravidez de Dinaz.
— Desculpe, Serabai — diz Bhima. — A fila na bica d’água hoje estava maior do que o normal.
Involuntariamente, Sera não consegue esconder sua irritação.
— Não causou grandes problemas — diz numa voz que soou severa até para si mesma. — Eu mesma tive que
fazer as omeletes dos dois. Eles não podem chegar atrasados ao trabalho.
Antes que Bhima pudesse responder, elas ouvem Viraf, do outro quarto:
— Dinaz — berra ele. — Viu minha gravata vermelha?
Aquela que você me deu de aniversário no ano passado?
— Nossa, você parece uma criança — retruca Dinaz, mas mesmo àquela distância as duas mulheres conseguem
perceber o sorriso em sua voz. — É de admirar que soubesse mastigar a comida antes de me conhecer. Como
será que você se virava?
— Muito mal — respondeu ele prontamente. — Eu usava meias de cores diferentes para ir trabalhar. E
quanto a me alimentar, não notou o babador que eu estava usando quando você me viu pela primeira vez?
Bhima balança a cabeça.
— Esse Viraf baba — diz ela — sempre tem alguma coisa para dizer. Faz a casa ficar alegre só por sua
presença, como se todos os dias fossem feriados, Holi, Diwali ou coisa do gênero.
Sera faz que sim com a cabeça e compreende imediatamente o que Bhima não disse: não é como nos velhos
tempos, quando Feroz estava vivo e ela e Bhima tinham que andar na ponta dos pés, temerosas de seus
silêncios e ataques explosivos. A casa parecia um túmulo, encastelada no silêncio, um silêncio que a
impedia de tocar os outros, de compartilhar seu mais obscuro segredo mesmo com os amigos mais próximos.
Quando Bhima era a única que sabia, a única que sentia a umidade no travesseiro molhado após longas
noites derramando lágrimas ardentes, a única que ouvia os sons abafados que provinham do quarto dela e
de Feroz…
Sera balança a cabeça com impaciência para limpar as teias de aranha do passado. “Aqui estou eu
chafurdando na história antiga, enquanto a coitada da Bhima está tão atrapalhada com a situação atual”,
pensa ela. “Que mulher egoísta e fútil eu me tornei!”
— Vamos, Bhima — diz ela. — O seu chá está pronto. Beba o chá e pode começar a lavar a louça.

3

Bhima Está na cozinha lavando a louça do jantar de ontem.
Sera fica observando enquanto as mãos magras e escuras como os galhos de uma árvore esvoaçam sobre os
pratos e as panelas, esfregando-os até que brilhem como o sol do meio-dia. Por mais que tente, ela nunca
consegue deixar as panelas brilhando como Bhima faz.
Viraf entra na cozinha arrumando a gravata.
— É isso aí — diz ele sem se dirigir a alguém em particular.
— Mês que vem vou comprar uma máquina de lavar louça. Não faz sentido ver a coitada da Bhima trabalhando
assim.
Bhima levanta os olhos agradecida, mas, antes que possa dizer uma palavra que seja, Sera fala num tom
mais alto.
— Que nada — diz ela. — A minha Bhima deixaria qualquer máquina de lavar louça envergonhada. Nem mesmo
uma máquina importada conseguiria fazer com que a louça ficasse tão limpa quanto a de Bhima. Guarde o
seu dinheiro, deekra.
“Em vez disso, dê ele para mim”, pensa Bhima consigo mesma. E então, com receio de que pudessem ler seus
pensamentos, ela se concentra numa determinada mancha de comida.
E também precisa de alguns segundos para não explodir. Às vezes não consegue entender Serabai direito.
Por um lado, fica corada de orgulho quando Serabai a chama de “minha Bhima” e fala a seu respeito como
se fosse sua dona. Por outro, sempre parece fazer coisas que contrariam os interesses de Bhima, como
recusar a oferta de Viraf baba de comprar uma máquina de lavar louça. Como seria bom não ter que
mergulhar suas mãos com artrite na água o dia inteiro! Curvar-se sobre a pia para lavar a louça a deixa
com dor nas costas e, ao final do dia, às vezes leva metade do caminho de volta para casa até conseguir
se desempenar completamente. Mas como falar com Serabai sobre essas coisas? Ainda mais hoje, que ela a
deixou com sentimento de culpa dizendo que tinha feito as omeletes para a própria filha e o genro? E qual
o problema se ela odeia cortar cebola? Por acaso ela própria gosta de ficar de cócoras para defecar num
banheiro comunitário? Mas o faz porque não há outra opção.
Comparado com aquela humilhação, cortar cebola parece tão fácil como cortar um pedaço de bolo.
Com a raiva dissipada, o senso de fair play de Bhima e a sua sólida afeição pela família Dubash
prevaleceram. “Mulher ingrata”, recrimina-se. “Quem é que cuidou de você quando teve malária? Foi o
fantasma do seu marido? Quem é que lhe deu dinheiro ontem mesmo para você tomar um táxi até a faculdade
de Maya? Foi a sua netinha que abriu as pernas? Não, foi essa mesma mulher cuja comida você come, e a
respeito de quem você está tendo pensamentos feios. Que vergonha!”
Lembrar o percurso até a faculdade de Maya fez Bhima olhar involuntariamente para o relógio da cozinha.
Mais alguns minutos e Viraf baba e Dinaz terão saído. Depois, ela e Serabai vão poder tomar uma xícara
de chá e conversar. Ela sabe que Sera está impaciente para ouvir os detalhes do que aconteceu ontem, e a
consciência disso deixa Bhima com um nó na garganta de emoção e gratidão. Pelo menos alguém mais se
importa tanto quanto ela com aquela garota grávida. Foi a sua generosidade que tornou possível a educação
de Maya e, se Serabai agora se sente traída pelo que Maya fez, se percebe que seu investimento no futuro
da menina não deu em nada, aí está mais um ponto a seu favor: nunca falou de seu desapontamento com
Bhima. Desde o primeiro momento em que Bhima relatou a notícia terrível e calamitosa, Sera ficou
preocupada, ansiosa e disposta a ajudar.
— É claro que ela vai ter que fazer um aborto — disse Sera imediatamente. — Não há outra saída. Maya é
brilhante demais, inteligente demais para arruinar a própria vida sendo mãe aos 17 anos. Vou cuidar dos
detalhes, Bhima, você não tem que se preocupar com nada. Você já tem muitos problemas, sei disso.
Mas, por razões que ela ainda não entendia, Bhima tinha hesitado. Talvez sem querer tenha sido
influenciada por Maya, que ficou toda tensa quando Bhima mencionou o aborto pela primeira vez. E,
depois, havia outra coisa: a esperança não revelada, e talvez não reconhecida, de que o pai da criança
aparecesse para assumir sua responsabilidade e fazer o que tinha que ser feito. Que a cortina do
anonimato e do segredo se abrisse para revelar um rapaz ansioso, porém honesto, assustado, mas disposto
a enfrentar esse novo desafio, casando-se e construindo uma vida com a mulher que geraria o seu primeiro
filho. Com 17 anos, Maya é muito nova para ter um filho, e o casamento certamente iria destruir seus
sonhos de conseguir o diploma em contabilidade e um emprego de contadora num bom escritório. O caminho
luminoso que se abria diante de Maya quando se tornou a primeira pessoa da família a entrar numa
universidade — o bom emprego que inevitavelmente estaria esperando por ela graças à influência de Dinaz
e Viraf e de seus contatos profissionais, escapando do trabalho braçal e extenuante que arruinou as
vidas de sua mãe e, antes dela, de sua avó —, esse caminho estaria decerto fechado. Mas — e aqui Bhima
se permitiu uma pitada de esperança — talvez um outro caminho se abrisse, se pelo menos Maya revelasse a
identidade do pai da criança. Podia ver a neta querida gorda e satisfeita, ocupada numa cozinha com as
louças e as panelas brilhando, fritando puris, panquecas com massa folhada, para um menino bagunceiro de
cabelos escuros e um pai que chegava em casa todas as noites voltando de um bom emprego.
Tinha ficado muito animada quando, depois de semanas insistindo, implorando, ameaçando, conseguiu que
Maya finalmente revelasse a identidade do pai da criança: Ashok Malhotra.

4

Elas estão sentadas na sala de jantar, tomando chá: Sera na caneca cinza-azulada que Dinaz comprou para
ela na Cottage Industries, Bhima na caneca de aço inoxidável que fica separada para ela na casa dos
Dubash. Como de hábito, Sera se senta à mesa enquanto Bhima fica de cócoras no chão, a seu lado.
Quando Dinaz era mais jovem, implicava com a mãe por algo que considerava uma injustiça: Bhima não poder
sentar-se no sofá ou numa cadeira e ter que usar utensílios separados, em vez daqueles que a família
normalmente usava.
— Você diz a todas as suas amigas que Bhima é como um membro da família, e que você não poderia viver sem
ela — alegava a adolescente. — Mesmo assim, ela não é boa o suficiente para se sentar à mesa com a gente.
E você e papai estão sempre falando desses hindus de casta superior que queimam os harijans, os
intocáveis, e de como isso é errado. Mas na sua própria casa você impõe essas diferenças de casta. Que
hipocrisia, mamãe!
— Olhe, Dinaz — dizia Sera com suavidade. — Acho que há uma pequena diferença entre queimar um harijan e
não permitir que Bhima use nossos copos. Além disso, você já notou o cheiro forte do tabaco que ela masca
o dia inteiro? Quer que os lábios dela toquem nossos copos?
— Mas não é só isso, mamãe, e você sabe muito bem. Certo, se é por causa do tabaco, por que você não
deixa ela se sentar no sofá ou nas cadeiras? Ou será que Bhima tem tabaco no traseiro também?
— Dinaz — exclamava Sera genuinamente chocada. — Que termos são esses? Você sabe que seu pai teria um
ataque se chegasse em casa um dia e encontrasse Bhima sentada no sofá.
Impossível não rir só de imaginar o olhar de horror no rosto de Feroz. Mas Dinaz não tinha acabado ainda.
— De qualquer modo, talvez seja inútil discutir essa história.
Até parece que a pobre da Bhima tem um minuto para se sentar e descansar nessa casa…
Sera arqueou a sobrancelha direita.
— Falando nisso, outro dia ouvi você incentivando Bhima a pedir um aumento. Olhe, Dinaz, não importa o
que você pense, você pertence a esta família, não à de Bhima. Acho que, no fim das contas, a família
Dubash trata os seus empregados melhor do que qualquer pessoa que a gente conheça. Dinheiro não cresce
em árvore, meu amor. Seu pai trabalha muito para nos dar o que temos. Não é correto da sua parte tentar
fazer Bhima se voltar contra ele. Lembre-se de que a caridade começa em casa.
Agora, observando Bhima tomando seu chá, Sera se remexe desconfortavelmente na cadeira. Desde a morte de
Feroz, de vez em quando pensava em convidar Bhima a sentar-se à mesa com ela. É claro que alguns amigos
iriam com certeza se escandalizar, e da próxima vez que uma empregada do prédio pedisse um aumento à
patroa, a mulher iria automaticamente culpar Sera Dubash por ter dado o mau exemplo.
— Sera fez Bhima se sentar em sua cabeça, não apenas no sofá — diria a vizinha. — O próximo passo vai ser
essas empregadas fundarem um sindicato.
Mas é claro que tudo aquilo logo passaria. E, na realidade, que importância tinha o que os vizinhos
diriam? Não são eles que a sustentam, e agora que Feroz morreu sente-se livre do medo que a atormentou
durante anos — de ser motivo de fofocas entre a vizinhança.
Ou pior: de que os mais perspicazes notassem os eventuais machucados que as roupas e a maquiagem não
conseguiam esconder e ficassem com pena dela, fazendo tsk-tsk às suas costas. Agora que Feroz morreu,
não tem mais medo da piedade deles.
E, mesmo assim… a simples idéia de Bhima sentada em suas poltronas a repugna. Só de pensar nisso fica
tensa, exatamente como naquele dia em que pegou a filha, então com 15 anos, dando um abraço carinhoso em
Bhima. Observando aquele abraço, Sera foi tomada por emoções conflitantes: orgulho e espanto pela
espontaneidade com que Dinaz quebrou um tabu não explicitado, mas também um sentimento de repulsa tal que
teve que reprimir a vontade de mandar a filha ir lavar as mãos.
“O que é surpreendente”, pensa Sera, relembrando o incidente.
Ela mesma tinha declarado em inúmeras ocasiões que Bhima era uma das pessoas mais limpas que conhecia.
— Bhima não saberia distinguir um desodorante de um pauzinho japonês, mas garanto que nunca senti nenhum
cheiro ruim nessa mulher — comentou certa vez com a amiga Mani. — Não sei como ela consegue isso, haja
vista a falta de privacidade e de água corrente na favela onde mora. Mas ela consegue.
E, desde que Sera a conhecia, Bhima fazia uma pausa de 15 minutos às quatro da tarde para lavar o rosto
com o sabonete que guardava na sua própria saboneteira na cozinha, botar talco Pond’s nas axilas e
arrumar o cabelo que tinha rareado muito nos últimos anos. Aquelas abluções diárias estimularam Sera,
que se tornou então mais consciente do seu próprio mau cheiro, e agora parava o que quer que estivesse
fazendo para se lavar também.
Mas, apesar disso tudo, há essa relutância, essa resistência em deixar Bhima usar os seus móveis.
Sentadas naquele silêncio amistoso tomando chá, Sera tenta justificar seu preconceito.
“Parte disso é a porcaria do tabaco que ela masca o dia inteiro”, pensa consigo mesma. “Isso só serve
para me deixar enjoada e sujar qualquer coisa a seu redor. E também, depois de ter visto onde ela mora,
posso imaginar as condições de vida na favela — que tipo de água ela usa para tomar banho e como é que
consegue se limpar direito nos ‘países baixos’.”
Perdida em seus pensamentos impulsivos e cheios de culpa, Sera percebe que perdeu um trecho do que Bhima
estava dizendo.
— Ah, Bhima, repita a última parte. Desculpe, não ouvi direito o que você falou.
Bhima suspira impaciente. E começa a história outra vez.

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