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Angústia, de Graciliano Ramos

by Lucas Gomes

Análise geral, por Leonardo Campos


Leonardo Campos é graduando em Letras Vernáculas com Habilitação em Língua Estrangeira Moderna – Inglês, pela UFBA, e colaborador do PASSEIWEB

Apesar de Vidas Secas, aparecer como o grande marco da carreira do alagoano Graciliano Ramos, Angústia, romance ignorado por parte da crítica na época do lançamento (1936), é considerado uma das obras primas do autor, que entrega ao leitor uma leitura densa sob o ponto de vista do narrador Luís da Silva.

A narrativa de Angústia traz total estranhamento em seu primeiro contato: é um romance que requer bastante atenção e cautela do leitor, visto que há fluxo de consciência em boa parte da história, além das diversas temáticas existentes na trama, que passeiam desde o existencialismo aos constantes símbolos, e concomitantemente, abrindo espaço para uma narrativa primorosamente cinematográfica.

O romance é narrado em tom confessional e memorialista, e por fins didáticos, alguns críticos atribuem-lhe um lugar na trilogia densa e fortemente existencialista, completada por Caetés (1933) e São Bernardo (1938). O três romances, narrados em primeira pessoa, apresentam personagens num intenso conflito, buscando respostas para seus atos, indagando o porquê dos acontecimentos que os afligem. Tais narrativas são semelhantes a diários íntimos. Em cada um deles, o narrador se desnuda e se desvenda, expondo as dolorosas confissões de culpas dramáticas.

Luís da Silva, protagonista do romance, veio do interior (mundo rural) para a capital. Ele é um anônimo qualquer na cidade. Em seu cotidiano medíocre (segundo o relato do mesmo), escreve para o jornal o que lhe pedem, atendendo a encomendas, de forma quase robótica. Ele se considera um intelectual fracassado num mundo sem lugar na prateleira de heróis: vive mediocremente, engaveta escritos, não progride nem em sua vida profissional, carregando o fardo de ser um reles funcionário público, nem em sua vida afetiva, mantendo um noivado prolongado pela falta de condições para a efetivação do casamento. Marina, a noiva, acaba se envolvendo com outro homem, fato que vai desencadear um pesadelo na vida do protagonista.

Inserido num mundo onde a voz do dinheiro fala mais alto, afunda-se em dívidas, aluguéis atrasados e empréstimos tomados no intuito de agradar a amada, Marina. Ele a pede em casamento mas ela o deixa por outro mais bem sucedido, Julião Tavares. Este sim, filho de comerciantes bem sucedidos, audacioso e competente na arte de ganhar dinheiro. Julião Tavares possui cacife para comprar Marina com todas as ditas que ela deseja: jóias, sedas, idas ao cinema e ao teatro.

Luís da Silva se vê impossibilitado de conviver com sua rotina desmotivada e sem novidades. Passa a conviver com um crescente ciúme que, gradativamente, o impele ao crime. Nesse clima de angústia, registrado magistralmente pela pena de Graciliano coincidem prisões interiores, marcadas pela vivência pessoal do personagem narrador e o mal-estar de sobreviver em uma sociedade da qual se sente expelido.

Luís acompanha a vida de Marina, seguindo-a feito uma sombra, principalmente depois que Julião Tavares a abandona grávida. O ódio a Julião cresce de forma arrasadora, semeando a idéia de que só a morte iria dar fim aquele suplício: neste caso, a morte de Julião Tavares, que representa tudo aquilo que ele não podia ser, e com isso, surgindo como uma grande ameaça. Oprimido pelos acontecimentos, Luís da Silva persegue seu rival, que andava às voltas com nova amante. Gradativamente amplia-se seu drama interior, sente-se metade, diminuído diante da prepotência de Julião Tavares e, enquanto a angústia o alucina, não tem condições de raciocinar claramente, mas percebe que não há outra saída a não ser o crime.

Há neste momento da narrativa um processo de construção interessante do narrador personagem Luís da Silva, que se vê no momento do assassinato como o seu instante de auto-estima, de realização pessoal, tornando-se o herói do seu próprio relato. É nesse contexto que Graciliano constrói a saga do protagonista de Angústia, construído de forma diferente dos apresentados em outras narrativas como São Bernardo e Caetés.

Nas últimas páginas do romance, após ter cometido o crime, Luís da Silva imerge em uma angustiante crise psicológica que o comprime e faz dele um ser alucinado e preso a um mundo em que as portas se fecham e não existem saídas. No romance, temos o efeito de circularidade também encontrado com maestria em Vidas Secas: a história encerra justamente como começou, numa narrativa circular, portanto, diferente do encontrado na trajetória de Fabiano e sua família, apresentada de forma circular através de quadros, de contos distintos. No caso de Angústia, temos o fluxo de consciência, possibilitando o narrador pensar aleatoriamente, indo e vindo de forma não ordenada. Baseado em pesquisas, podemos dizer que o fluxo de consciência é uma técnica literária introduzida por James Joyce, em que o monólogo interior de um ou mais personagens é transcrito. Nesta técnica, a narrativa apresenta-se como um fluxo de consciência que intercepta presente e passado, quebrando os limites espaço-temporais. No fluxo de consciência há uma quebra da narrativa linear, onde já não é tão claro distinguir entre as lembranças da personagem e a situação presentemente narrada. Na literatura brasileira, merece destaque a obra de Clarice Lispector e Graciliano Ramos (especialmente em Angústia).

Alguns questionamentos abordados na narrativa de Luís da Silva:

Alguns dados são de fundamental importância para entendimento maior do romance Angústia. A primeira delas é o existencialismo, uma corrente filosófica e literária que destaca a liberdade individual, a responsabilidade e a subjetividade do ser humano. O existencialismo considera cada homem como um ser único que é mestre dos seus atos e do seu destino.

Baseado em pesquisas, podemos inferir que o existencialismo afirma o primado da existência sobre a essência, segundo a célebre definição do filósofo francês Jean-Paul Sartre: “A existência precede e governa a essência.” Essa definição funda a liberdade e a responsabilidade do homem, visto que esse existe sem que seu ser seja pré-definido. Durante a existência, à medida que se experimentam novas vivências redefine-se o próprio pensamento (a sede intelectual, tida como a alma para os clássicos), adquirindo-se novos conhecimentos a respeito da própria essência, caracterizando-a sucessivamente. Esta característica do ser é fruto da liberdade de eleição. Sartre, após ter feito estudos sobre fenomenologia na Alemanha, criou o termo utilizando a palavra francesa “existence” como tradução da palavra alemã “Dasein”, termo empregado por Heidegger em Ser e tempo.

Após a Segunda Guerra Mundial, uma corrente literária existencialista contou com Albert Camus e Boris Vian, além do próprio Sartre. É importante notar que Albert Camus, filósofo além de literato, ia contra o existencialismo, sendo este somente característica de sua obra literária. Vian definia-se patafísico.

Vale ressaltar que Graciliano Ramos vai manter contato com a literatura de Camus ao traduzir um dos seus romances. Na leitura de Angústia, podemos perceber claramente que Luís da Silva enxerga a vida como uma série de lutas. O individuo, no existencialismo (e no romance) é forçado a tomar decisões e frequentemente as escolhas sao ruins.

Angústia e outras literaturas (e artes)

Refletindo sobre esse sentimento de culpa, encontramos no livro um movimento de consciência angustiada que o aproxima do poema “A mão suja”, de Carlos Drummond de Andrade.

Minha mão está suja.
Preciso cortá-la.
Não adianta lavar
A água está podre.
Nem me ensaboar
O sabão é ruim.
A mão está suja,
suja há muitos anos

Lendo o poema, entendemos melhor o romance e o seu irremediável desespero, tão surdo, cerrado e profundo como o de muitos versos do grande poeta mineiro. Desespero oriundo do sentimento de um drama não só pessoal, mas também coletivo. Drama de todos, de tudo; da vida malfeita, dos homens mal vividos. Da velha Germana, “que dormiu meio século numa cama dura e nunca teve desejos”; de José Baía, matando sem maldade e de riso claro; de seu Evaristo, enforcado num galho de carrapateiro; do Lobisomem e suas filhas. Gente acuada, bloqueada, esmagada pela vida, espremida até virar bagaço, sem entender o porquê disso tudo. E a dureza, a incrível dureza desse pequeno mundo sem dinheiro nem horizonte, cuja existência é uma rede simples e bruta de pequenas misérias, golpes miúdos e infinitas cavilações.

Aprofundando a análise e passando desse limbo de vidas mesquinhas para os círculos mais ásperos dos motivos, talvez pudéssemos encontrar, pelo menos em parte, uma explicação sexual para a consciência deturpada de Luís da Silva. Com efeito, há no livro três aspectos sexuais do seu abafamento. Na infância, a segregação imposta pelo pai, a solidão em que se desenvolveram os sonhos e os germes da inadaptação.

Sonhos e desejos, acumulados na infância, não se libertam na mocidade. Pobre, vagabundo, humilhado, Luís vive sem mulheres, represando luxúria, em conseqüência.

Finalmente, quando encontra Marina, vem Julião Tavares e a carrega, deixando-o na angústia maior do ciúme, alimentado pelo desejo insatisfeito. Essa tensão dramática do sexo reprimido percorre quase todas as páginas. Luís tem a obsessão da intimidade dos outros, fareja safadezas, vê em tudo manifestações eróticas e vestígios de posse. O problema do recalque e o conseqüente sentimento de frustração estão marcados por três símbolos fálicos: as cobras da fazenda do avô, os canos de água de sua casa e a corda com que enforca Julião Tavares.

Para fazer surgir esse mundo atroz, Graciliano Ramos modifica a técnica anterior. Como em Caetés e São Bernardo, a narrativa é em primeira pessoa; mas só em Angústia podemos falar propriamente em monólogo interior, em palavras que não visam ao interlocutor e decorrem de necessidade própria. Nos dois primeiros, há uma separação nítida entre a realidade narrada e a do narrador, mesmo quando (em São Bernardo) este se impõe à narrativa; em ambos, os figurantes são respeitados como tais e as cenas apresentadas como unidades autônomas. Em Angústia, o narrador tudo invade e incorpora à sua substância, que transborda sobre o mundo. Daí uma apresentação diferente da matéria.

O diálogo, por exemplo, que antes era o principal instrumento na arquitetura das cenas (chegando a parecer excessivo em Caetés e pelo menos abundante em São Bernardo), se reduz a pouco. A narrativa rompe amarras com o mundo e se encaminha para o monólogo de tonalidade solipsista. O devaneio assume valor onírico, e o livro parece ao leitor “…as horas de um longo pesadelo…”

Além disso, surge um elemento novo: o recurso à evocação autobiográfica, juntando-se, freqüentemente, por associação, às coisas vistas e à experiência cotidiana, para constituir o fluxo da vida interior. Cada acontecimento é um estímulo para Luís da Silva repassar teimosamente fatos e sentimentos da infância e da adolescência, que pesam na sua vida de adulto como sementeira longínqua das suas ações e do seu modo de ser.

Neste aspecto, cabe uma interrogação: até que ponto há elementos da vida do romancista no material autobiográfico da personagem? “Ninguém dirá que sou vaidoso referindo-me a esses três indivíduos. — disse ele no discurso em que agradeceu o jantar do cinqüentenário — porque não sou Paulo Honório, não sou Luis da Silva, não sou Fabiano.

Quanto à primeira e à terceira personagens, não há dúvida. Da segunda, nota-se que a sua meninice possui aspectos semelhantes à narrada em Infância. Só que reduzida a elementos da etapa anterior aos dez anos, quando morou na fazenda, à sombra do avô materno (aqui, paterno) e na vila de Buíque; aproveitou, pois, a parte do sertão para dar maior aspereza às raízes da personagem. Pelas Memórias do cárcere, sabemos ainda que lhe emprestou emoções e experiências dele próprio, inclusive o desagrado pelo contato físico e o episódio com a filha da dona da pensão, no cinema, que o obceca. E não é difícil perceber que deu a Luís da Silva algo de muito seu: a vocação literária e o ódio ao burguês.

Luís da Silva mantém a mesma posição de Macabéa, protagonista de A hora da estrela, de Clarice Lispector. Ambos personagens estão diante dos olhares da capital, inseridos na sociedade de forma sufocante, ressaltando que no caso de Luís da Silva, temos um perfil de homem que tem consciência das coisas, enquanto Macabéa segue a linha inocente, sendo manipulada pelas pessoas que a cercam. Citando fontes sobre Clarice, podemos afirmar que ela adota o discurso regionalista em A hora da estrela, algo incomum em suas obras. Através da personagem Macabéa, a autora descreve uma nordestina que tenta escapar da miséria e do subdesenvolvimento, abandonando Alagoas pela possibilidade de melhores condições de vida no Rio de Janeiro. Clarice foi muitas vezes criticada por se afastar da literatura regional emergente do modernismo. Em A hora da estrela, ela foge do “hermetismo” característico de suas primeiras obras e alia sua linguagem à vertente regionalista da segunda geração do modernismo brasileiro. Na época da publicação, o crítico literário Eduardo Portella falou do surgimento de uma “nova Clarice”, com uma narrativa extrovertida e “o coração selvagem comprometido com a situação do Nordeste brasileiro.

Há algumas afirmações do contista e crítico Hélio Polvora em relação ao romance Angústia que valem ser citadas aqui: segundo informações, a narrativa apresenta similaridades com a estética surrealista. O Surrealismo foi um movimento artístico e literário surgido primariamente em Paris dos anos 20, inserido no contexto das vanguardas que viriam a definir o modernismo, reunindo artistas anteriormente ligados ao Dadaísmo e posteriormente expandido para outros países. Fortemente influenciado pelas teorias psicanalíticas de Sigmund Freud (1856-1939), o surrealismo enfatiza o papel do inconsciente na atividade criativa. Seus representantes mais conhecidos são Max Ernst, René Magritte e Salvador Dali no campo das artes plásticas, André Breton na literatura e Luis Buñuel no cinema.

Há recursos cinematográficos como “fade in”, que é (aumentar gradualmente) e “fade out”, (diminuir gradualmente), mas não só em filme, em qualquer circunstância. No caso da literatura, temos passagens do romance, principalmente no ponto de vista do narrador ao ver a mulher que vai fazer o aborto em Marina, e algumas cenas antes da morte de Julião Tavares, que esses recursos oriundos do cinema se apresentam na narrativa.

Simbologia no romance de Graciliano Ramos: a corda, a cobra e os ratos

Há alguns símbolos citados com freqüência no romance, como a corda, a cobra e os ratos. De acordo com pesquisas no dicionário de símbolos literários, a cobra, além de apresentar o fálico, um constante confronto pessoal do personagem protagonista, vai ainda representar a falsidade (Julião Tavares?). A corda, assim como a cobra, representa de certa forma o fálico, portanto, fornece também uma idéia de busca da redenção, salvação. Os ratos a sujeira que o personagem enxerga à sua volta e a já citada necessidade de uso da água, para lavar a sujeira que lhe toma.

Outros comentários:

É um livro fuliginoso e opaco. O leitor chega a respirar mal no clima opressivo em que a força criadora do romancista fez medrar a personagem mais dramática da moderna ficção brasileira – Luís da Silva. Raras vezes encontraremos na nossa literatura estudo tão completo da frustração; um frustrado violento, cruel, irremediável, que traz em si reservas inesgotáveis de amargura e negação.

Daí a “fuligem” referida, que encobre, suja, sufoca e provoca desejos impossíveis de libertação. Luís da Silva sente-se sujo fisicamente, por isso a obsessão da água purificadora percorre o livro, em que o banheiro desempenha um papel importante.

Alguns dias depois, achava-me no banheiro, nu, fumando… Abro a torneira, molho os pés. (…)

O banheiro da casa de seu Ramalho é junto, separado do meu por unia parede estreita. (…)

Lá estava Marina outra vez nova e fresca, enchendo a boca e atirando bochechos nas paredes. (…)

Este sentimento de abjeção volta-se sobre ele próprio; Luís da Silva anula-se pela autopunição e só consegue equilibrar-se assassinando o rival, equilíbrio precário que o deixa arrasado, mas de qualquer modo é a única maneira de afirmar-se.

Tecnicamente, Angústia é o romance mais complexo de Graciliano Ramos. É a história de um frustrado, Luís da Silva, homem tímido e solitário, que vive entre dois mundos com os quais não se identifica. Produto de uma sociedade rural em decadência, Luís da Silva alimenta um nojo impotente dos outros e de si mesmo. Apaixonado por uma vizinha, Marina, pede-a em casamento e lhe entrega as parcas economias para um enxoval hipotético. Surge Julião Tavares, que tem tudo o que falta a Luís: ousadia, dinheiro, posição social, euforia e uma tranqüila inconsciência. A fútil Marina se deixa seduzir sem dificuldades e Luís, amargurado, vai nutrindo impulsos de assassínio que o levam, de fato, a estrangular o rival.

Em certo sentido, a morte de Julião lavares representa para Luís da Silva a desforra que tira contra todos, mas que em seguida perde o aparente significado de vitória:

Tive um deslumbramento. O homenzinho da repartição e do jornal não era eu. Esta convicção afastou qualquer receio de perigo. Uma alegria enorme encheu-me. Pessoas que aparecessem ali seriam figurinhas insignificantes, todos os moradores da cidade seriam figurinhas insignificantes. Tinham-me enganado. Em trinta e cinco anos haviam-me convencido de que só me podia mexer pela vontade dos outros. Os mergulhos que meu pai me dava no poço da pedra, a palmatória de mestre Antônio Justino, os berros do sargento, a grosseria do chefe da revisão, a impertinência macia do diretor; tudo virou fumaça. Julião Tavares estrebuchava.

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