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Contos Negreiros, de Marcelino Freire

by Lucas Gomes

Na obra Contos Negreiros, Marcelino Freire aborda temas delicados e polêmicos
como racismo, turismo sexual, tráfico de órgãos e homossexualismo.
A paisagem urbana é o cenário principal de seus cantos (contos).
Algumas paisagens de importantes centros urbanos, como Recife e São Paulo,
como as zonas de prostituição, morros, favelas e pontos turísticos,
tornam-se palcos para a exposição de uma realidade complexa e miserável,
vivida por prostitutas, “bichas”, negros, índios, além
de abrigar traficantes de órgãos e de drogas, e turistas sexuais.
Marcelino Freire apresenta 16 narrativas (contos e crônicas) que procuram
aproximar-se de uma linguagem coloquial, memorial e, às vezes, musical,
baseada nas influências deixadas pela oralidade das ladainhas e canções
nordestinas. Ele escreve a partir do ponto de vista de brasileiros miseráveis
ou mortos-vivos, que, como “zumbis”, vendem de tudo para sobreviver:
drogas, o corpo, o rim. Sua criação literária passa pela
valorização da memória, oriunda das heranças culturais
– a cultura popular nordestina – e a percepção de
um tempo presente. As experiências ocorridas no dia-a-dia das metrópoles
brasileiras apresentam testemunhos de sujeitos que estão à margem
da sociedade contemporânea. Sujeitos sem voz, sem espaços para
o testemunho, vistos quase como objetos ou tratados como objetos pela mídia
e por toda sociedade.

Embora o título do livro e a capa do mesmo, com uma imagem de um homem
negro (possivelmente escravo), indiquem, num primeiro momento, que as narrativas
são dedicadas a histórias sobre o negro, o autor não parte
do preconceito ao negro ou de sua realidade de exclusão para compor sua
obra. Ela é composta pela experiência de exclusão de todos
os “mortos-vivos” que perambulam pelas ruas dos grandes centros
do país, independentemente da cor da pele.

A narração de uma experiência guarda algo da intensidade
do vivido, seja por aqueles que narram sua própria experiência
ou por aqueles narradores observadores que narram a experiência do outro.
Nos Contos Negreiros, são narrados acontecimentos comuns à
vida de sujeitos comuns. Fatos do dia-a-dia narrados por seus protagonistas,
aqueles que sempre têm suas vozes emudecidas pelos próprios acontecimentos
dos quais são autores. Para tanto, Freire utiliza-se, como já
citado, da oralidade, da memória, ora do relato objetivo, ora do relato
subjetivo, para desenvolver testemunhos que não visam formar uma identidade,
mas apresentar as condições extremas vividas em plena contemporaneidade.
Tais condições são encontradas no “canto” Nação
Zumbi, que apresenta a história de um personagem sem nome, que estava
prestes a fechar um negócio: a venda do próprio rim para traficantes
de órgãos. O personagem narra com indignação e frustração
a interrupção da compra, a impossibilidade do fechamento do negócio.
A polícia descobre a trama e o desfecho da história é a
afirmação: “sei que vão encher meu rim de soco”.
Ele acreditava que a venda do seu órgão era uma forma de mudar
de vida, de “livrar sua barriga da miséria”. O texto mostra
a pobreza, o comércio ilegal, o corpo como moeda, como pode ser lido
na seguinte passagem do conto:

“E o rim não é meu? Logo eu que ia ganhar dez mil,
ia ganhar. Tinha até marcado uma feijoada pra quando eu voltar, uma feijoada.
E roda de samba
pra gente rodar (..) E o rim não é meu, sarava?
Quem me deu não foi Aquele-lá-de-cima, Meu Deus,
Jesus e Oxalá? (…) O esquema é bacana. Os caras chegam aqui
levam a gente para Luanda ou Pretória. (…) Puta oportunidade só
uma vez na vida (…)”
.

Na história acima, o protagonista teria que ir a Luanda ou Pretória
para fazer sua cirurgia. As metrópoles, desde o período moderno,
surgem como centros para a formação cultural, intelectual e profissional
do homem que, então, através do trabalho, gera o progresso. No
entanto, elas tornaram-se também o cenário mais comum dos processos
ilícitos construídos pela humanidade: tráfico, seqüestro,
violência, roubos. O autor abriga seus personagens dentro das zonas mais
inóspitas da cidade, mas sem deixar de produzir um fascínio nos
próprios personagens (e nele mesmo). O testemunho representa as experiências
de um coletivo que as torna, sobretudo, comunicáveis. Algo que, embora
possa virar notícia, não torna a experiência uma mensagem
a ser legitimada. Segundo Beatriz Sarlo, para existir a experiência é
necessário que a narração esteja unida ao corpo e é
exatamente esse tipo de narração que é feito pelos personagens
dos Contos Negreiros, pois suas experiências são contadas
com os próprios corpos e através da memória do seu autor.
As experiências do nordestino que muda para a cidade grande oferecem a
Marcelino Freire uma série de acontecimentos e histórias que são
transformadas em relatos do cotidiano dos personagens excluídos.

Os testemunhos dos personagens apresentam a vida do citadino, em particular
daqueles que habitam no submundo da cidade, vivendo à margem, mas que
ganham voz e corpo nas narrativas do autor pernambucano. Os sujeitos-testemunhas
transmitem suas experiências fatídicas, entretanto, esses personagens
não são mais importantes que os efeitos dos seus testemunhos ou
que as mensagens transmitidas pelos seus relatos. Para Beatriz Sarlo: “Em
suma, não se pode representar tudo o que a experiência foi para
o sujeito, pois se trata de uma matéria prima em que o sujeito-testemunha
é menos importante que os efeitos morais de seu discurso. Não
é o sujeito que se restaura a si mesmo no testemunho do campo, mas é
uma dimensão coletiva que, por ocasião e imperativo moral, se
desprende do que o testemunho transmite”.

O testemunho na obra de Freire nasce de um anseio subjetivo, mas que expressa
situações limites vivenciadas por um coletivo, revelando, portanto,
o cenário que compõe a vida contemporânea nas cidades brasileiras,
embora pareça distante e imperceptível à nossa sociedade.
As experiências dos seus personagens-testemunhas são comunicadas
a partir de uma linguagem que beira a oralidade, vinda das ruas para dentro
do texto escrito. O relato testemunhal dos personagens-excluídos de Marcelino
Freire nos permite enxergar com mais lucidez a realidade vivenciada por eles
e que apontam para uma visão realista e literariamente ligada ao contemporâneo.

Um dos textos mais criativos do livro é “Linha de tiro”,
diálogo que se repete indefinidamente, como aquelas figuras dentro de
figuras dentro de figuras, com as quais Magrite brincava com grande habilidade.
A conversa é um assalto em que a mulher acha que o assaltante lhe quer
vender chocolates. Serve para mostrar a infinidade de mal-entendidos que é
esta nação, pois nem o assaltante se consegue fazer entender:
diante da ameaça não há pânico, apenas estranhamento,
como se cada um falasse uma língua diversa e nem mesmo o gestual tivesse
um significado: “É um assalto! Não, obrigado, hoje não
vou querer chocolates”. É um texto rico para pensarmos a dificuldade
histórica que o Brasil tem de elaborar um discurso constitutivo, em que
todos falem um idioma comum em prol da construção de algo duradouro
e consistente.

“Yamani”, trata de um assunto quase ignorado na nossa prosa: o turismo
sexual e a exploração de crianças prostituídas.
Um turista, ao viajar pela Amazônia, deixa claro sua aversão ao
Brasil e suas florestas, mas, ao mesmo tempo, narra seu desejo por uma criança
indígena (prostituta), como é possível observar neste trecho:

“E os índios? O que tem os índios?
O que você achou dos índios do Brasil?
Fodam-se os índios do Brasil. Toquem fogo na floresta. Vão à
merda (…) Só lembro de Yamami. Sempre gostei de crianças. Aqui
é proibido. Yamami, meu tesouro perdido (…) Indiazinha típica
dos seus trezes anos. As unhas pintadas, descalçadas. Tintas extintas
na cara.
Coisinha de árvore (…)”
.

No conto, o estrangeiro revela seu descaso referente à natureza e ao
povo brasileiro. Seu interesse pela indiazinha Yamami, de treze anos, é
puramente sexual. A crítica à situação dos índios
e à exploração de crianças no Brasil é direta:
“Lá posso colocar Yamami no colo e ninguém me enche
o saco. E ninguém fica me policiando. Governo me recriminando”
.

Nota-se que o texto nos oferece a experiência vivida por um estrangeiro
no Brasil, que viaja pela Amazônia e se encontra com “uma indiazinha”.
O testemunho aqui se dá de duas formas: a primeira é a visão
desinteressada e alienada que esse estrangeiro tem sobre o país, nada
disposto a conhecer a cultura, as tradições, a floresta ou os
problemas sociais da Amazônia. Por outro lado, esse mesmo personagem nos
apresenta à realidade: o turismo sexual e a prostituição
infantil que tomam conta das capitais do país e a marginalização
dos nossos índios. A história, em princípio, surge como
um simples relato de mais um turista vindo ao país, interessado nas “belezas
tupiniquins”, mas que ganha uma dimensão maior ao denunciar uma
situação-limite.

“Solar dos príncipes” traz um grupo de moradores de uma favela
que resolve filmar o dia-a-dia dos moradores de um condomínio de luxo,
um toque sarcástico para comentar a onda que tem sido engomadinhos com
uma câmera na mão entrando nas favelas para registrar o ‘inusitado’
e ganhar prêmios internacionais em cima da miséria alheia. Aqui
os papéis se invertem, mostrando a situação num avesso
cheio de pequenas sutilezas. Já se inicia anunciando a que vem: “Quatro
negros e uma negra pararam na frente deste prédio”
. Trata-se
de um grupo de amigos do Morro do Pavão que quer filmar um apartamento
e fazer uma entrevista com um morador. Quando o porteiro, também negro,
impede a entrada do grupo, o narrador desabafa: “A idéia foi
minha, confesso. O pessoal vive subindo no morro para fazer filme. A gente abre
as nossas portas, mostra as nossas panelas, merda”
. O incômodo
com o fato de permitir a entrada aos de fora, mas não ser recebido quando
se desloca ao bairro rico, é manifestado pelo narrador. Ainda, denuncia-se
a visão distorcida dos que documentam a periferia: “A gente
não só ouve samba. Não só ouve bala”
.
Ao fim, o porteiro chama a polícia e, assim, a estréia dos quatro
aspirantes cai na mesmice: novamente o filme tem tiro e sirene da viatura policial.

“Nação Zumbi”, como já citado acima, é
um dos pontos altos do livro conta a história de um homem preso por tentar
vender o próprio rim, que afinal, era dele, podia fazer com o órgão
o que lhe desse na telha. Há um diálogo com o personagem andarilho
de “Cronicamente inviável”, filme pouco visto e que tirante
alguns exageros, poderia colocar na pauta do dia assuntos que urgem ser discutidos
– e sem hipocrisia – pela nossa sociedade. O preconceito racial é retomado.
O narrador tenta provar de que maneira a venda de seu rim o tiraria da situação
de pobreza em que se encontra. No entanto, o tom de decepção de
sua fala e a chegada dos policiais no fim da narrativa prenunciam o seu destino:
“A polícia em minha porta, vindo pra cima de mim. Puta que
pariu, que sufoco! De inveja, sei que vão encher meu pobre rim de soco”
.

“Coração” é um texto mais longo, em que salta
a veia narrativa de Freire. Seu tema é a homossexualidade.

Em “Totonha”, uma senhora discursa sobre os motivos de não
querer aprender a escrever: não é mais moça, não
tem importância alguma, não quer baixar a cabeça para imprimir
seu nome em um pedaço de papel. Totonha argumenta: “O pobre
só precisa ser pobre. E mais nada precisa. Deixa eu, aqui no meu canto.
Na boca do fogão é que fico. Tô bem. Já viu fogo
ir atrás de sílaba?”
.

Em“Trabalhadores do Brasil”, o autor refere-se aos homens e mulheres
que se esforçam todos os dias em subempregos para sobreviver. As personagens
desse canto recebem os nomes de alguns Orixás e de referências
africanas e afro-brasileiras: Olorô-quê, Zumbi, Tição,
Obatalá, Olorum, Ossonhe, Rainha Quelé, Sambongo. O narrador interpela
diretamente o leitor com a pergunta ao final de cada parágrafo: “(…)
tá me ouvindo bem?”
. Sem nenhuma pontuação,
o texto explode em uma crítica indignada aos “pré-conceitos”
relacionados aos negros, mais direta no primeiro e nos últimos parágrafos:
“(…) ninguém
vive aqui com a bunda preta pra cima tá me ouvindo bem?”
e
“Hein seu branco safado? Ninguém aqui é escravo de ninguém”.

“Esquece” define o que é violência aos olhos de um
excluído social, que representa tantos outros. Também marcado
pela falta de pontuação, o conto é um “desafogo”
diante das notícias freqüentes sobre o tema, veiculadas intensamente
nos jornais e na televisão, através da lente das classes média
e alta. Nesse conto, a vítima está do outro lado, quase sempre
esquecida: “Violência é a gente receber tapa na cara
e na bunda quando socam a gente naquela cela
imunda cheia de gente e mais gente e mais gente e mais gente pensando como seria
bom ter um carrão do ano e aquele relógio rolex mas isso fica
para depois uma outra hora. Esquece”
.

A visão estrangeira da personagem alemã em “Alemães
vão à guerra” representa o senso comum: “Nosso
dinheiro salvarria, porr exemplo, as negrrinhas do Haiti”
. A personagem
olha para o Haiti e para Salvador como lugares quentes e cheios de amor. Porém,
é possível afirmar que a noção de “estrangeiro”
ultrapassa a questão da fronteira e instala-se nas diferenças
entre as classes sociais, o que aponta alguns olhares estrangeiros dentro de
um país tão desigual como o Brasil.

Vaniclélia, personagem do conto homônimo, apanha do homem com
quem vive e a quem chama de belzebu. Seu parâmetro de comparação
são os “gringos”, que escolhem as mulheres no Calçadão
de Boa Viagem: “Casar tinha futuro. Mesmo sabendo de umas que quebravam
a cara. O gringo era covarde, levava pra ser escrava. Mas valia. Menos pior
que essa vida de bosta arrependida”
.

No conto “Curso Superior” um jovem expõe à mãe
seu medo de entrar na faculdade e não conseguir concluir o curso, por
diversos motivos: porque possui deficiência nas disciplinas, tem medo
do preconceito, pode engravidar a loira gostosa da turma e não conseguir
nenhum tipo de emprego, porque o policial vai olhá-lo de cara feia e
ele vai fazer uma besteira. Seu fim seria a prisão, sem o privilégio
da cela especial. Por meio desse discurso profético, o círculo
vicioso do preconceito racial e social é tratado com ironia pelo autor.

O conto “Caderno de turismo” foge um pouco da temática
do livro, mas não deixa de ser polêmico: “Zé, olhe
bem defronte: que horizonte você vê, que horizonte? Pensa que é
fácil colocar nossos pés em Orlando?” (p.69).

“Nossa rainha” e “Meu negro de estimação”
tratam, essencialmente, do embranquecimento do negro. O conflito entre o desejo
da menina do morro de ser a Xuxa e a situação de pobreza em que
se encontra faz com que sua mãe reflita sobre as diferenças sociais
entre sua filha e a Rainha dos Baixinhos. A mídia, novamente, constrói
um modelo que reforça o preconceito racial e social. A menina pode vir
a ser a Rainha da Bateria, sonho mais próximo à sua realidade.
Xico Sá questiona se o conto “Meu negro de estimação”
não seria uma fábula a Michael Jackson. O narrador refere-se a
seu negro de estimação como um homem melhor do que era: “Meu
homem agora é um homem melhor. Mora nos jardins, veste calça.
Causa inveja por onde passa. Meu homem não tem para ninguém, só
para mim. Meu homem se chama Benjamin”
. É importante lembrar
que, na gravação em CD que Marcelino Freire fez de seus Contos
Negreiros, há uma mudança significativa nesse conto: substitui-se
“homem” por “negro”.

Créditos: Sálvio Fernandes de Melo, Universidade Estadual
de Londrina | Moacyr Godoy Moreira, mestrando em Literatura Brasileira,
USP-SP | Flávia Merighi Valenciano, Mestra em Estudos Comparados
de Literaturas de Língua Portuguesa, FFLCH-USP.

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