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Tabacaria (Poema), de Álvaro de Campos (heterônimo de Fernando Pessoa)

by Lucas Gomes

Datado de 1928, o poema Tabacaria enquadra-se na terceira fase poética de Álvaro de Campos, a fase, “intimista”, onde mergulha nas profundezas da angústia e do pessimismo. O autor retorna ao tema do cansaço, da inquietação diante do incompreensível. Tabacaria é o melhor exemplo deste último período criativo de Campos. Talvez, seja a poesia mais significativa desse heterônimo, pois nela podemos encontrar muitas das características presentes em sua obra.

No poema é predominante o niilismo, o sentimento de revolta, o inconformismo, a desumanização, também, um deprimente vazio e a desilusão própria dos tempos pós-guerra e certo desleixo do português, como o próprio Pessoa afirmou em apontamentos.

O texto é um poema moderno, caracterizado assim pelos versos livres, versos que Ricardo Reis, outro heterônimo de Pessoa, em um apontamento no livro `O Eu profundo e outros eus` faz as seguintes considerações:

O que verdadeiramente Campos faz, quando escreve em verso, é escrever prosa ritmada cm pausas maiores marcadas em certos pontos, para fins rítmicos, e esses pontos determina-os ele pelos fins dos versos. Campos é um grande prosador, com uma grande ciência é o ritmo da prosa, e a prosa de que se serve é aquela em que se introduziu, além dos vulgares sinais de pontuação, um pausa maior e especial, que Campos, como os seus pares anteriores e semelhantes, determinou representar graficamente pela linha quebrada no fim, pela linha disposta como o que se chama um verso.

Nos primeiros versos (Não sou nada/ Nunca serei nada./ Não posso querer ser nada), já se percebe a descrença presente em relação a si mesmo e ao longo do poema em relação a tudo. O Eu-poético sabe que só o que possui são sonhos. ( …tenho em mim todos os sonhos do mundo.).

Sozinho no quarto o Eu-poético contempla a rua, motra-se uma oposição entre dentro (o quarto), subjetivo, a sua reflexão, e a rua (fora) a realidade objetiva, e percebe que lá há um mistério que ninguém vê (Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,/ Para uma rua inacessível a todos os pensamentos) apenas ele percebe, pois possui uma capacidade imaginativa muito grande (Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres) faz referência a morte como um desses mistérios citados no verso: Com a morte a pôr humidade nas paredes e cabelos brancos nos homens. Outra atítese que se repete ao longo do poema é o tudo/nada (Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada).

O Eu-poético está refletindo e isso o deprime (Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade) e a falta do sonho, a lucidez, também o deixa deprimido e negativo (Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer).

A perplexidade de quem pensa, reflete, chega a conclusões, mas não as coloca em prática (Estou hoje perplexo como quem pensou e achou e esqueceu), assim se vê divido, a oposição entre a subjetividade (dentro) e a realidade (fora) na estrofe seguinte retorna ao texto (À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,/ E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.)

Tudo que aprendeu ele procura esquecer, pois não lhe foram úteis (Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada./ A aprendizagem que me deram), e recorre a natureza em busca de um sentido — talvez influenciado por Alberto Caeiro, seu mestre —, (Desci dela pela janela das traseiras da casa,/ Fui até o campo com grandes propósitos), mas essa busca é em vão, também no campo não vê sentido, para ele essa `vida natural´ é inútil, pois o Eu-poético é um homem da cidade, lúcido, angustiado e não inocente (Mas lá encontrei só ervas e árvores,/ E quando havia gente era igual à outra), então o Eu-poético volta a reflexão (Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei-de pensar?)

No verso seguinte o Eu-poético pensando sobre si retorna a oposição do sonho (desejo) e realidade reflexiva (Que sei eu de que serei, eu que não sei o que sou?/ Ser o que penso? Mas penso ser tanta coisa), o Eu-poético opõe a capacidade de sonhar a limitação do mundo real (E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!/(…) Cem mil cérebros se concebem em sonho gênios como eu,/ E a história não marcará, quem sabe?, nem um,) o niilismo, a negatividade, volta, agora em relação ao futuro (Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.) novamente a antítese sonho/realidade aparece no poema, onde ele se compara a doidos, sonhadores, malucos, que tem conclusões a cerca de muitas coisas (Em todos os manicômios há doidos malucos com tantas certezas!/ Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?).

Depois o Eu-poético percebe que os sonhos nada valem (Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas/ Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas, E quem sabe se realizáveis,) pois são limitados pelo mundo externo e real (Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente?), pois o mundo não é para aqueles que apenas sonham, mas para aqueles que lutam (O mundo é para quem nasce para o conquistar/ E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão), assim apesar de ter conquistado mais que Napoleão, amado mais que Cristo e filosofado mais que Kant, nada lhe adiantou pois tudo foi feito na imaginação (sonho) e não na realidade (Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez./ Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo,/ Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.), este verso marca novamente a impotência perante a realidade (Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,/ Ainda que não more nela). Os versos seguintes estão no pretérito marcando novamente o niilismo o Eu-poético que esperou sem sucesso e nada conseguiu, agora já não pode crer nele nem em nada (Serei sempre o que não nasceu para isso;/ Serei sempre só o que tinha qualidades;/ Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta/ E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira, / E ouviu a voz de Deus num poço tapado. / Crer em mim? Não, nem em nada.) com isso a realidade objetiva pesa sobre seu ser inflamado de sonho (Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente/ o seu sol a sua chuva, o vento que me acha o cabelo) o Eu-poético se vê desiludido (E o resto que venha, ou tiver que vir, ou não venha.), os versos seguintes são marcados pela incapacidade do Eu-poético perante o mundo real e externo que o torna marginalizado nesse mundo sem emoções e opaco: (Escravos cardíacos das estrelas,/ Conquistámos todo o mundo antes de nos levantar da cama; / Mas acordámos e ele é opaco, / Levantámo-nos e ele é alheio,/ Saímos de casa e ele é a terra inteira,/ Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido.)

A passagem mais bela do poema, talvez, é quando o Eu-poético inveja a inocência de uma criança que come chocolates, pois ele pensa, reflete muito e isso lhe é doloroso, é angustiante e traz infelicidade (Come chocolates, pequena; /Come chocolates!/ Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates). Mas essa inveja que lhe causou um desejo de trocar de lugar com a menina logo dessipa-se, pois ao se colocar no lugar da criança, apenas com o ato de tirar a lâmina de papel de prata a realidade lhe vem a tona e percebe que o papel não é de prata, mas de estanho, acabando com o sonho de ser feliz e inocente como a menina, ou seja, jogando tudo fora o papel e os sonhos (Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!/ Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folhas de estanho,/ Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)

Nos versos seguintes o Eu-poético exibe novamente sua apatia, seu vazio interior, a negatividade e o niilismo em relação a si e ao futuro, pois o sonho foi vencido pela realidade (Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei/ A caligrafia rápida destes versos,/ Pórtico partido para o Impossível./ Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas,/ Nobre ao menos no gesto largo com que atiro/ A roupa suja que sou, sem rol, pra o decurso das coisas,) com isso ele recorre a figuras femininas inexistentes, pois o sonho alivia seu sofrimento (Tu, que consolas, que não existes e por isso consolas,/ Ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva,/ Ou patrícia romana, impossivelmente nobre e nefasta,/ Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida,/ Ou marquesa do século dezoito, decotada e longínqua,/ Ou cocote célebre do tempo dos nossos pais,) procura também algo na modernidade, sem saber o que procura, que lhe ajude na inspiração (Ou não sei quê moderno – não concebo bem o quê-,/ Tudo isso, seja o que for, que sejas, se pode inspirar que inspire!), mas tudo é em vão, pois o vazio interno e a falta de esperança continua (Como os que invocam espíritos invocam espíritos invoco/ A mim mesmo e não encontro nada,).

O Eu-poético volta a observação do real (Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta./ Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam,) nesse momento o Eu-poético se desumaniza, se difere das pessoas (Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam,) a realidade impenetrável lhe deixa alheio, marginal ao mundo, novamente, (E tudo isso me pesa como uma condenação ao degredo,/ E tudo isto é estrangeiro, como tudo.)

A desilusão e o desejo de troca de lugar com outra pessoa voltam ao texto (Vivi, estudei, amei, e até cri,/ E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.) voltam também a antítese de tudo/nada e a identificação que no mundo não se deve sonhar apenas (Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso).

O Eu-poético constata sua falha, nos versos seguintes, (Fiz de mim o que não soube,/E o podia de mim não o fiz./ O dominó que vesti era errado) e a perda da identidade pois ela não era real, era imaginada (Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me./Quando quis tirar a máscara/ Estava pegada à cara), vivendo sob uma personalidade irreal, ele perdeu tempo (Quando a tirei e me vi ao espelho,/ Já tinha envelhecido.) sem personalidade não pode fazer parte do mundo, neste momento a palavra ´máscara´, até então, usada como metáfora para personalidade, agora passa a contextualizar a metáfora do mundo como um teatro, sem fazer parte do mundo ele não pode subir ao palco, devendo ficar a margem (Deitei fora a máscara e dormi no vestiário).

Mas o Eu-poético após constatar suas falhas, percebe-se sem personalidade, vê uma hipótese de redenção na escrita, ele encontra utilidade em toda sua reflexão, assim com a escrita ele pode provar, a si mesmo, que é um ser elevado (E vou escrever esta história para provar que sou sublime.), mas ao olhar a Tabacaria, representação da realidade, essa euforia logo passa, voltando o niilismo, a apatia, a desilusão e o sentimento de exclusão (Quem me dera encontrar-te como coisa que eu fizesse,/ E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte,/ Calcando ao pés a consciência de estar existindo,/ Como um tapete em que um bêbado tropeça/ Ou um capacho que os ciganos roubaram e não vale nada,).

Ao olhar o dono da Tabacaria que representa o homem comum sente-se desconfortávelm (Mas o dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta./ Olhou-o com o desconforto da cabeça mal voltada/ E com o desconforto da alma mal-entendendo.) depois gradativamente volta o sentimento de inutilidade da Tabacaria, de seus versos, do mundo e de tudo, é significativa o modo que aparece essa gradação, é como se a inutilidade das vidas do Eu-poético e do dono da tabacaria atingisse a rua, o país, o planeta até atingir todo o universo (Ele morrerá e eu morrerei./ Ele deixará a tabuleta, e eu deixarei versos./ A certa altura morrerá a tabuleta também, e os versos também./ Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,/ E a língua em que foram escritos os versos./ Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu./ Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente/ Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas,/ Sempre uma coisa defronte da outra,/ Sempre uma coisa tão inútil como a outra,).

O anticlímax dá-se nos versos seguintes com a visão de um homem que entra na Tabacaria, provavelmente um cliente, a realidade volta ao Eu-poético (Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?/ E a realidade plausível cai de repente em cima de mim.), depois o Eu-poético é tomado por uma euforia e vai tentar escrever (Semiergo-me enérgico, convencido, humano,/ E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário.), após essa euforia passageira o Eu-poético se refugia na evasão, sem pensar, sem refletir, para apenas saborear o cigarro (Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los/ E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos./(…) E continuo fumando./ Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando.)

Com o fim do momento evasivo e de solidão o Eu-poético volta a refletir, mas agora emotivamente, cogitando a felicidade na vida simples (Se eu casasse com a filha da minha lavadeira/ Talvez fosse feliz.) O cliente sai da tabacaria o Eu-poético o reconhece, é um homem comum, sem muitas inquietações e reflexões (O homem saiu da tabacaria (..)/ Ah, conheço-o: é o Esteves sem metafísica.) o poema chega ao fim quando o Eu-poético interage, se comunica, com o homem — chamado Esteves —, nome interessante e que combina com o sentimento de todo o poema, pois se trata do verbo estar no pretérito acompanhado do sintagma ‘sem metafísica’, trazendo uma ambiguidade simbólica a esse homem comum: esteves sem metafísca, fazendo assim a aproximação do subjetivo (Eu-poético) e objetivo (homem e o dono da Tabacaria).

Nos últimos versos (Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me./ Acenou-me adeus gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo/ Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o Dono da Tabacaria sorriu.) o Eu-póetico volta-se desiludido e sem esperança para a realidade, enquanto o dono da Tabacaria alheio a tudo apenas sorri.

Os quatro primeiros versos constituem uma introdução a este poema, sendo esta independente do primeiro e dos restantes quatro momentos. Assim, nestes quatro versos, o “eu” confessa o seu fracasso como algo irremediável, Não posso querer ser nada. Será esta, aliás, a temática orientadora deste poema em que o sujeito poético reconhece que, por querer ser tudo como possibilidade, nunca será nada.

Os quatro momentos do poema estão relacionados com os espaços físicos onde se desloca o sujeito poético e que se caracterizam como:

DENTRO: quarto (cadeira) / FORA (janelas)

No primeiro momento, versos 5 a 31, o “eu” reflete sobre o excesso de realidade do mundo exterior Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é; uma rua cruzada constantemente por gente, e a irrealidade de tudo, uma rua inacessível; impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa; Com o mistério das coisas.

Neste primeiro momento, o “eu” encontra-se à janela do seu quarto mantendo, deste modo, o contacto visual com o exterior, rua e Tabacaria. O pessimismo, como já citado, é nota dominante neste texto como, por exemplo, em Com a morte a pôr humidade nas paredes e cabelos brancos nos homens. Esta ideia de pessimismo encontra-se ligada, por sua vez, ao desgaste do Tempo e à morte que se tem como certa. (ver versos 12 e 13 com referência ao Destino, ligado à ideia de Morte, como um tirano que tudo determina).

A negatividade do “eu” é assumida através da anáfora presente no início dos versos Estou hoje vencido; Estou hoje lúcido; Estou hoje perplexo; Estou hoje dividido.

Depois destas constatações, o resumo desta sequência presente no verso, Falhei em tudo.

Poema na íntegra:

1.     Não sou nada.
        Nunca serei nada.
        Não posso querer ser nada.
        À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.

5.      Janelas do meu quarto,
        Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
        (E se soubessem quem é, o que saberiam?),
        Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
        Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
10.   Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
        Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres
        Com a morte a pôr umidade nas paredes e cabelos brancos nos homens.
        Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.
        Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
15.   Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
        E não tivesse mais irmandade com as coisas
        Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
        A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
        De dentro da minha cabeça,
20.   E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.

        Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu.
        Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
        À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
        E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.

25.   Falhei em tudo.
        Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
        A aprendizagem que me deram,
        Desci dela pela janela das traseiras da casa.
        Fui até ao campo com grandes propósitos.
30.  Mas lá encontrei só ervas e árvores,
        E quando havia gente era igual à outra.
        Saio da janela, sento-me numa cadeira.
        Em que hei de pensar?

        Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?
35.   Ser o que penso? Mas penso ser tanta coisa!
        E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!
        Gênio? Neste momento
        Cem mil cérebros se concebem em sonho gênios como eu ,

        E a história não marcará, quem sabe?, nem um,
40.   Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.
        Não, não creio em mim.
        Em todos os manicômios há doidos malucos com tantas certezas!
        Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?
        Não, nem em mim…
45.   Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo.
        Não estão nesta hora gênios-para-si-mesmos sonhando.
        Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas –
        Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas -,
        E quem sabe se realizáveis,
50.   Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente?
        0 mundo é para quem nasce para o conquistar
        E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão.
       Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.
        Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo,
55.   Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.
        Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,
        Ainda que não more nela;
        Serei sempre o que não nasceu para isso;
        Serei sempre só o que tinha qualidades;
60.   Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta,
        E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,
        E ouviu a voz de Deus num paço tapado.
        Crer em mim? Não, nem em nada.
        Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente
65.   0 seu sol, a sua chuva, o vento que me acha o cabelo,
        E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha.
        Escravos cardíacos das estrelas,
        Conquistamos todo o mundo antes de nos levantar da cama;
        Mas acordamos e ele é opaco,
70.   Levantamo-nos e ele é alheio,
        Saímos de casa e ele é a terra inteira,
        Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido.

        (Come chocolates, pequena; Come chocolates!
        Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
75.   Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
        Come, pequena suja, come!
        Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!
        Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de estanho,
        Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)
80.   Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei
        A caligrafia rápida destes versos,
        Pórtico partido para o Impossível.
        Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas,
        Nobre ao menos no gesto largo com que atiro
85.   A roupa suja que sou, sem rol, pra o decurso das coisas,
        E fico em casa sem camisa.

        (Tu, que consolas, que não existes e por isso consolas,
        Ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva,
        Ou patrícia romana, impossivelmente nobre e nefasta,
90.   Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida,
        Ou marquesa do século dezoito, decotada e longínqua,
        Ou cocote célebre do tempo dos nossos pais,
        Ou não sei quê moderno – não concebo bem o quê -,
        Tudo isso, seja o que for, que sejas, se pode inspirar que inspire!
95.   Meu coração é um balde despejado.
        Como os que invocam espíritos invocam espíritos invoco
        A mim mesmo e não encontro nada.
        Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta.
        Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam,
100. Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam,
        Vejo os cães que também existem,
        E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo,
        E tudo isto é estrangeiro, como tudo.)
        Vivi, estudei, amei, e até cri,
105. E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.
        Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira,
        E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem cresses
        (Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso);
        Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo
110. E que é rabo para aquém do lagarto remexidamente.

        Fiz de mim o que não soube,
        E o que podia fazer de mim não o fiz.
        0 dominó que vesti era errado.
        Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
115. Quando quis tirar a máscara,
        Estava pegada à cara.
        Quando a tirei e me vi ao espelho, Já tinha envelhecido.
        Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
        Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
120. Como um cão tolerado pela gerência Por ser inofensivo
        E vou escrever esta história para provar que sou sublime.

        Essência musical dos meus versos inúteis,
        Quem me dera encontrar-te como coisa que eu fizesse
        E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte,
125. Calcando aos pés a consciência de estar existindo,
        Como um tapete em que um bêbado tropeça
        Ou um capacho que os ciganos roubaram e não valia nada.

        Mas o Dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta.
        Olho-o com o desconforto da cabeça mal voltada
130. E com o desconforto da alma mal-entendendo.
        Ele morrerá e eu morrerei.
        Ele deixará a tabuleta, eu deixarei versos.
        A certa altura morrerá a tabuleta também, e os versos também.
        Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,
135. E a língua em que foram escritos os versos.
        Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu.
        Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente
        Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas,
        Sempre uma coisa defronte da outra, Sempre uma coisa tão inútil como a outra ,
140. Sempre o impossível tão estúpido como o real,
        Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério da superfície,
        Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra.
        Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?)
        E a realidade plausível cai de repente em cima de mim.
145. Semiergo-me enérgico, convencido, humano,
        E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário.

        Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los
        E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos.
        Sigo o fumo como uma rota própria,
150. E gozo, num momento sensitivo e competente,
        A libertação de todas as especulações
        E a consciência de que a metafísica é uma conseqüência de estar mal disposto.

        Depois deito-me para trás na cadeira
        E continuo fumando.
155. Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando.

        (Se eu casasse com a filha da minha lavadeira
        Talvez fosse feliz.)
        Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou á janela.

        0 homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?).
160. Ah, conheço-o; é o Esteves sem metafísica.
        (0 Dono da Tabacaria chegou á porta.)
        Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.
        Acenou-me adeus, gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo
         Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o dono da tabacaria sorriu.

Créditos: Fabiano Fernandes Garcez|

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