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Marafa, de Marques Rebelo

by Lucas Gomes

Em Marafa, romance escrito por Marques Rebelo em 1935, vemos mais uma
vez retratados, com perfeita fidelidade, o povo e o dia-a-dia de uma cidade ainda
provinciana, recém-industrializada: O Rio de Janeiro na primeira metade do século
XX. O Carnaval, a boemia, as malandragens, as brigas, os bate-bocas e todo o linguajar
característico são reproduzidos aqui pelo mestre carioca, que, com um estilo empolgante
e muito humor.

Malandros como Teixeirinha, prostitutas como Rizoleta, trabalhadores em busca
de um lugar ao sol como José, jovens tradicionais como Sussuca, jovens avançadas
como Zuleica, filósofos de escritório como Baltazar… É amplo o painel de personagens
de Marafa. Juntos, eles mostram como era o Rio de Janeiro na época,
especialmente o Rio dos subúrbios, cortiços e bordéis, matéria-prima com que o
autor construiu a maior parte de sua magistral obra literária.

A palavra “Marafa”, que dá título ao romance, e que se encontra hoje em desuso, significa, segundo o
dicionário Aurélio, “vida desregrada, licenciosa, libertina”. E é dentro deste mote que circulam os
personagens suburbanos que aparecem dentro do romance, marcados, sempre, por uma existência trágica.

O romance é escrito em pequenos capítulos, às vezes, surgem até poemas em prosa, no qual um grande número
de personagens se insurge com marcada presença existencial, sendo que desaparecem e voltam repentinamente
para depois sumirem novamente. O desenrolar do livro marca o ritmo normal da vida urbana nascente daquele
tempo, firmada nos tempos de hoje, onde estranhos nos cruzam, interferindo ou não em nossa vida para,
depois, sem mais nem menos, desaparecerem para nunca mais serem reencontrados por nós.

Existem dois personagens centrais no livro, ao qual a maior parte das ações está ligada. José e
Teixeirinha.

José é um homem honesto e trabalhador, que se apaixona por uma suburbana com o qual quer se casar. Para
melhorar sua vida, pois só assim poderá ser aceito pela família da moça e se casar, transforma-se num
lutador de boxe, mergulhando no submundo dos contratos sujos e falsos das violentas lutas. Sua família,
no qual faz parte um irmão com carreira pela medicina, acha esse investimento de José, através do boxe,
indigno para um homem de sua classe. Aos poucos, no entanto, vão se acostumando com a fama do filho
lutador que sai em todas as manchetes de jornais como um grande campeão.

O segundo personagem, Teixerinha, é o protótipo do malandro, com passagens ocasionais pela polícia, que
vive de pequenos golpes, explorando prostitutas, pulando de quarto em quarto de hotéis sórdidos para
fugir de credores e que, para dar algum sentido menos perverso à sua existência, cuida de alguma escola
carnavalesca.

A grande surpresa do livro é a forma com que esses dois personagens se encontram, fechando o sentido
trágico de suas existências.

Os personagens do romance de Rebelo nos surpreendem a cada aparição com suas nuances contraditórias e
multifacetadas. É o caso do cuidadoso, bem comportado e estudioso irmão de José, que acaba se apaixonando
pela pretendente de seu irmão, que passa a maior parte do tempo viajando atrás de lutas de boxe, vindo a
assediá-la de forma insistente. A recusa da mesma leva-o a transtornos emocionais perigosos. Mesmo a
mocinha, assustada diante do fato, mergulha em universos próximos ao suicídio por não conseguir informar
ao noivo o assédio que sofre por parte do seu irmão.

Dentro do romance como um todo, o que se faz notar é esse cheiro de noite, de perversão, de desespero, de
carências, de insanidade – porém, tudo relatado de uma forma tranqüila, sem o mínimo expressionismo.
Na literatura de Rebelo não se houve um berro, um gesto dissonante. No entanto, segundo Mário de Andrade,
“ele era o nosso criador mais pessimista, uma personalidade sofrida e trágica”.

Esse passeio pela vida cotidiana de personagens suburbanos ou de classe média em ascensão e o confronto
de seus desejos com as exigências de uma vida urbana em formação valem a leitura de Marafa. Diferente da
escrita machadiana, fortemente marcada pela psicologia dos personagens, no caso de Rebelo o que conta é a
dinâmica entre o ritmo da vida vulgar dos seus personagens e o ritmo de sua escrita – elementos que se
bem entrosados fazem sugir aquilo que pode ser definido como uma excelente obra de arte.

Trecho da obra

Mendigos estendem as mãos imundas, mostrando chagas, andrajos e deformidades. Mendigas dão maminhas
mirradas a esqueletos de crianças. Inválidos, cegos, aleijados, portadores de elefantíase, suspeitas
caras de leprosos, há mendigos nas esquinas, nas soleiras, no portão dos cemitérios, nos degraus das
igrejas, à porta dos restaurantes, dormindo no sopé das estátuas e nos bancos das praças. Há tantos
mendigos e falsos mendigos como há pardais. E há a Comissão de Turismo, convidando o mundo, com maus
cartazes, para conhecer as belezas naturais da capital maravilhosa.

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