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A Revolta da Cachaça (Peça da obra A Revolta da Cachaça), de Antonio Callado

by Lucas Gomes

Dedicada ao ator negro Sebastião Prata, conhecido como Grande Otelo, essa peça se
passa no Rio de Janeiro dos anos 50-60.

Pode-se dizer que se trata de um meta-teatro, porque seu tema é uma peça de teatro
que deveria ter como ator principal um negro, mas que não se termina, porque o
diretor tem dificuldade de acabá-la talvez por isso mesmo. Esse autor e diretor é
Vito, que começou a escrever a peça há 10 anos atrás para seu amigo negro, Ambrósio.
Dez anos depois Ambrósio volta para reclamá-la a ele e a sua mulher, Dadinha, com
quem, no passado tivera uma história de amor.

Em A Revolta da Cachaça a referência histórica nos recorda o episódio
que ficou conhecido com este nome, no Rio de Janeiro, de que resultou a morte de
João de Angola e de Jerônimo Barbalho, decapitados no dia 6 de abril de 1661, na
frente do Convento de Santo Antônio, por contrariar uma proibição da metrópole
referente à produção de cachaça na colônia. Mas esta não é a trama da peça. O episódio
deveria compor o argumento de uma peça que um ator negro, Ambrósio, luta para
representar mas se vê impedido no seu propósito por não contar com a cooperação de
um dramaturgo branco, supostamente seu aliado, comprometido com o sucesso junto à
mídia. As informações históricas são prestadas pelo personagem Ambrósio que não só
se revela um conhecedor da revolta como também um crítico do momento histórico em que
vive. Além disso, representa a consciência crítica do ator que exige a sua participação
na composição da peça, o que desencadeia o conflito principal na relação ator/dramaturgo,
levando à catástrofe.

As relações amorosas e de amizade são desmascaradas no final, pois o autor se nega
a terminar a peça e acaba provocando a ira de Ambrósio, que tenta matá-lo, mas morre
no final, sem consegui-lo. Nessa versão, o negro acaba representando o papel ao qual
sempre esteve confinado e do qual queria fugir: o de marginal e criminoso.

Vito é um intelectual que trata o negro de forma paternalista. Dadinha, a mulher
branca que o utiliza como objeto sexual. Aí se insinua algo que voltará em peças
mais recentes de autores negros, que é a visão da mulher branca atraída sexualmente
pelo negro, ou melhor, pela projeção que faz dele em suas fantasias: o violador
forte e bruto contra a vítima indefesa da barbárie.

A peça, que teria Ambrósio no papel principal, semi-escrita e nunca terminada,
como já citado, se chamaria “A revolta da cachaça”, e o papel heróico do negro
seria feito por Ambrósio.

A discussão sobre a peça e suas várias versões se dá enquanto todos bebem cachaça
(enviada em um grande barril por Ambrósio, como presente misterioso, antes de sua
chegada em pessoa à casa dos antigos companheiros de teatro). Ambrósio ameaça
Vito com um revólver. A problemática do negro está condensada aí. A peça é
complexa e não há espaço disponível para mostrar isso aqui, mas as citações abaixo,
de Ambrósio, podem dar uma idéia dessa complexidade.

Sobre a discriminação do negro pela polícia:

“Eu procuro sempre andar meio almofadinha, como se dizia antigamente. Crioulo
tem que andar com ar de quem é troço na vida, de quem tem grana no banco e erva
viva no bolso. Se ele não se enfeita e de repente pinta uma cana–quem é o primeiro
a entrar no camburão? Até o negro se explicar…”

A respeito do teatro:

“Quando pensamos que peças de teatro são escritas no Brasil desde que Cabral
abriu a cortina deste palco… parece incrível que esta seja a primeira que tem
um preto como protagonista.
E o preto protagonista é o crioulo mesmo e não o branco pintado de preto.
Se você continuar assim quem fica sem peça sou eu, porra. Acabo outra vez fazendo
papel de criado, de ladrão, de bicheiro, ou chofer.

(…)

Me dá a peça, Vito! Não aguento mais ser copeiro, punguista eassaltante.
Vim aqui cobrar a fama que você me deve. Vim para morar, pra morrer. Mas no meio
do rio ou da rua. Chega de margem.”

A peça encena a contradição branco e negro, mas cercada de outras que ainda a
fazem mais atual e complexa: a relação homem-mulher e homem-homem, já que sugere
uma paixão homossexual entre Vito e Ambrósio no passado e no presente, assim como
entre este e a mulher de Vito, Dadinha. A questão de não escrever a peça se cruza,
assim, com o racismo e a questão sexual; ela não se conclui apenas porque o ator é
negro, mas porque Vito tem ciúmes, como marido e como homossexual.

No final, depois de disparar em Vito e de colocá-lo dentro do Barril de Cachaça,
Ambrósio foge para o jardim. Um policial dispara e o fere. Mas parece que morre do
coração. As reações da polícia são representativas do preconceito racial, pois ela
só pode esperar do negro o papel de assassino. A palavra final é de Dadinha, para a
qual o crioulo se transforma no morto que, impessoalmente, como um pobre desconhecido,
será conduzido diretamente ao necrotério.

A primeira versão, identificada pelo ator como “enredo de escola de samba”, lembra
a tendência geral para a representação estereotipada do negro em papéis secundários,
e o ator negro se nega a participar desta mistificação, pedindo – ou intimando o
dramaturgo a produzir a outra versão. A peça acaba por transformar-se numa discussão
sobre problemas de ordem estética e ideológica, envolvendo a produção de um texto em
que um ator negro deve definir a sua participação como artista e como conhecedor da
sua história. É através deste que uma série de informações são anunciadas, de tal
forma que o público fica sabendo quem são os integrantes da Revolta, em que
circunstância aconteceu e qual foi o seu resultado. É através do ator negro que o
público toma conhecimento da história de Jerônimo Barbalho, um fidalgo que produzia
cachaça no seu engenho, embora não dispensasse o vinho da Madeira. Foi traído pelo
irmão Agostinho Barbalho que o denunciou ao governador por produzir cachaça sem
licença, o que irá ocasionar a sua perseguição e punição. Mas o ator deve representar
outro personagem, por quem manifesta especial simpatia: João de Angola, cúmplice na
Revolta. Sobre este, Ambrósio informa: “João de Angola fazia as armas de Jerônimo
Barbalho e o abebé de Iemanjá. Os pretos em Luanda e Benguela se escravizando entre
eles mesmos porque lá ninguém obedecia. Todos mandavam. Tomavam posse uns dos outros,
trocavam de dono, se vendiam em troca da cachaça que vinha do Rio.”

Assim, as informações vão se somando e o leitor ou espectador vai compondo uma
história de resistência, acontecida no passado, ao mesmo tempo em que se processa
outro conflito, no presente, no processo da produção do texto, quando o personagem
negro luta para imprimir nele a sua marca, exigindo do dramaturgo uma versão que
não contemple as exigências do mercado.

O ator negro vive o conflito do marginalizado que deve “andar meio almofadinha”,
com “ar de quem é troço na vida, de quem tem grana no banco e erva viva no bolso”
para não ser o “primeiro a entrar no camburão” no confronto com a polícia. O
personagem cria, assim, na vida real, uma máscara para defender-se. No teatro precisa
de um papel principal para reverter os estereótipos humilhantes que envolvem a presença
do negro em papéis secundários ou pontas. Por isto Ambrósio explode: “Estou de saco
cheio de fazer papel de marginal, o cara que fica na praia espiando barco, no meio-fio
olhando automóvel, sempre na beira, na margem. Vim aqui cobrar a fama que você me deve.
Vim pra morar, pra morrer. Mas no meio do rio ou da rua. Chega de margem.”
Movido
por esta hybris o personagem negro vai às últimas conseqüências na sua empresa, decidido
a matar ou morrer, literalmente. A obsessão leva-o a uma série de estratégias para
forçar o dramaturgo a concluir a versão definitiva da peça, a começar por um insólito
presente que é anonimamente enviado ao dramaturgo antes da sua chegada: um enorme barril
de cachaça que chega à casa de Vito, intrigando a todos pela sua origem. Depois chega
inesperadamente o ator que procura sensibilizar o dramaturgo com a manifestação de
um último desejo de artista frágil, doente, vaticinando uma morte próxima.
Entretanto, diante da insensibilidade do dramaturgo aos seus apelos de Ambrósio o
ator saca de uma arma, precipitando o desenlace da peça, que culmina com a intervenção
policial, tiroteio e morte do ator, cumprindo-se, desta forma, a premonição de
Ambrósio, que não morre propriamente do tiro, desfechado na sua perna pelo policial,
mas em decorrência de problemas cardíacos. A cena final, com o dramaturgo saindo
comicamente de dentro do barril de cachaça, onde estivera escondido, e a constatação
da morte de um negro, como acontecimento banal que causa alívio a todos, reproduz
uma situação típica das manchetes policiais, envolvendo negros que previamente são
julgados como marginais perigosos.

Nesta peça de Callado é importante lembrar a presença do ator negro, como personagem
principal, que luta para representar um papel vivido por um outro negro na história,
levando-nos ao tema da resistência, como forma de afirmação do negro, numa sociedade
que tende a conferir-lhe papéis secundários na vida e no teatro, como lembra o
personagem Ambrósio. Entretanto a consciência crítica do personagem não se traduz
numa ação política organizada, capaz de levá-lo resistir ou pelo menos a tentar
resistir diante dos obstáculos que se interpõem à sua realização profissional como
negro dentro do teatro. O personagem luta isoladamente e de forma suicida, provocando,
inconscientemente, a sua própria aniquilação, marcado por uma desmedida que levará à
queda inevitável. Ele tem uma arma de fogo que não sabe manejar. Vito, o vencedor,
confirma a sua superioridade. O barril de cachaça, presente do ator negro, é,
ironicamente, a barricada que defende o inimigo, quando, num lance cômico o dramaturgo
se esconde dentro do barril e sai de lá encharcado de cachaça depois do perigo. O negro
é relegado para o seu lugar. A peça termina melancolicamente com a confirmação da sua
derrota. A sua hybris o fulmina. A hamartia, ou a falha aristotélica, para lembrar a
tragédia clássica, decorre da necessidade e urgência, por parte do ator, de arrancar
de um suposto aliado a peça impossível, em função dos valores opostos que ator e
dramaturgo representam. A recognição do inimigo por parte do ator desencadeia neste
um sentimento de revolta que precipita a catástrofe.

A peça apresenta, assim, alguns traços da tragédia, não faltando ao personagem negro
a premonição da própria morte e a desmedida que o arrasta para ela. Para atenuar
a seriedade trágica, Callado apela para alguns expedientes cômicos, mas no seu conjunto
a peça tende mais para um drama que conserva algumas marcas do trágico.

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