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O analista de Bagé, de Luís Fernando Veríssimo

by Lucas Gomes

O livro O Analista de Bagé, de Luís Fernando Veríssimo, é a combinação entre
a rude sinceridade e a franqueza do homen do interior gaúcho. Textos paródicos que
desmistificam o regional e a psicanálise.

São 27 hilariantes histórias do impagável analista gaúcho, freudiano, machista, que
costuma tratar seus pacientes a tapa. É um clássico do humor brasileiro. Com práticas
pouco convencionais, o analista barbudo, macho e sistemático não deixa de picar fumo e
tomar chimarrão nas consultas.

Suas opiniões são hilárias, inclusive sobre a competente secretária Lindaura. O sotaque
forte e suas conclusões sobre os problemas dos clientes geram uma combinação divertida.

Na obra, Luís Fernando Veríssimo apresenta as relações analista/cliente de forma irônica e
debochada, fazendo alusões ao regionalismo, à política nacional, à intelectualidade –
sempre de forma iconoclasta e irreverente.

Texto escolhido: O LIXO

Encontram-se na área de serviço. Cada um com seu pacote de lixo. É a primeira vez que
se falam.
– Bom dia.
– Bom dia.

– A senhora é do 610.
– E o senhor do 612.
– É.
– Eu ainda não lhe conhecia pessoalmente…
– Pois é…
– Desculpe a minha indiscrição, mas tenho visto o seu lixo…
– O meu quê?
– O seu lixo.
– Ah…
– Reparei que nunca é muito. Sua família deve ser pequena…
– Na verdade sou só eu.
– Mmmm. Notei também que o senhor usa muita comida em lata.
– É que eu tenho que fazer minha própria comida. E como não sei cozinhar…
– Entendo.
– A senhora também…
– Me chame de você.
– Você perdoe minha indiscrição, mas tenho visto alguns restos de comida em seu lixo.
Champignons, coisas assim…

– É que eu gosto muito de cozinhar. Fazer pratos diferentes. Mas como moro sozinha,
às vezes sobra…
– A senhora… Você não tem família?
– Tenho. Mas não aqui.
– No Espírito Santo.

– Como é que você sabe?
– Alguns envelopes no seu lixo. Do Espírito Santo.
– É. Mamãe escreve todas as semanas.
– Ela é professora?

– Isso é incrível! Como foi que você adivinhou?
– Pela letra no envelope. Achei que era letra de professora.

– O senhor não recebe muitas cartas. A julgar pelo seu lixo.
– Pois é…
– No outro dia tinha um envelope de telegrama amassado.
– É.
– Más notícias?
– Meu pai. Morreu.
– Sinto muito.
– Ele já estava bem velhinho. Lá no sul. Há tempos não nos víamos.
– Foi por isso que você recomeçou a fumar?
– Como é que você sabe?
– De um dia para o outro começaram a aparecer carteiras de cigarro amassadas no seu lixo.
– É verdade. Mas consegui parar outra vez.
– Eu, graças a Deus, nunca fumei.

– Eu sei. Mas tenho visto uns vidrinhos de comprimido no seu lixo…
– Tranqüilizantes… Foi uma fase. Já passou.
– Você brigou com o namorado, certo?
– Isso também você descobriu no lixo?
– Primeiro o buquê de flores, com o cartãozinho, jogado fora. Depois, muito lenço de papel.
– É, chorei bastante, mas já passou.
– Mas hoje ainda tem uns lencinhos…
– É que eu estou com um pouco de coriza.
– Ah.
– Vejo muita revista de palavras cruzadas no seu lixo.
– É. Sim. Bem. Eu fico muito em casa. Não saio muito. Sabe como é.
– Namorada?
– Não.
– Mas há alguns dias tinha uma fotografia de mulher no seu lixo. Até bonitinha.

– Eu estava limpando umas gavetas. Coisa antiga.
– Você não rasgou a fotografia. Isso significa que, no fundo, você quer que ela volte.
– Você já está analisando o meu lixo!
– Não posso negar que seu lixo me interessou.
– Engraçado. Quando examinei o seu lixo, decidi que gostaria de conhecê-la. Acho que
foi a poesia.
– Não! Você viu meus poemas?
– Vi e gostei muito.
– Mas são muito ruins!
– Se você achasse eles ruins mesmo, teria rasgado. Eles só estavam dobrados.
– Se soubesse que você iria ler…
– Só não fiquei com eles porque, afinal, estaria roubando. Se bem que, não sei: o lixo
da pessoa ainda é propriedade dela?
– Acho que não. Lixo é domínio público.

– Você tem razão. Através do lixo, o particular se torna público. O que sobra da nossa
vida privada se integra com as sobras dos outros. O lixo é comunitário. É a nossa parte
mais social. Será isso?
– Bom, aí você já está indo fundo demais no lixo. Acho que…
– Ontem, no seu lixo…
– O quê?

– Me enganei, ou eram cascas de camarão?
– Acertou. Comprei uns camarões graúdos e descasquei.
– Eu adoro camarão.
– Descasquei, mas não comi. Quem sabe a gente pode…
– Jantar juntos?
– É.
– Não quero dar trabalho.
– Trabalho nenhum.
– Vai sujar a sua cozinha.
– Nada. Num instante se limpa tudo e põe os restos fora.
– No seu lixo ou no meu?

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