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O código das águas, de Lindolf Bell

by Lucas Gomes

Em O código das águas afirma-se a trajetória desempenhada pelo poeta Lindolf
Bell enquanto peregrino em busca da poesia ideal. A palavra, aí, é o instrumento
capaz de apreender a essência do universo criado. O código das águas
reelabora o ideário estético do autor, que tem a ver unicamente com o fluir irredutível,
ininterrupto e inclassificável de sua poesia – águas – insubmissa a códigos, exceto
o das águas, cuja, codificação nega a si mesmo, exigindo-se a mutabilidade, o
dinamismo constante.

A obra é uma poesia que celebra o refazer-se, a mudança, a transição e o caráter
transitório de tudo pela ‘palavra/ quem em breve/ será a palavra dentro em breve./
A palavra/ que se reveste de linho real/ na linha real da vida:/ enfermidade,
/ efemeridade’. O título da obra fala de uma impossibilidade, uma contradição:
suas águas são aquelas do rio heraclitiano, puro movimento, irrepetíveis. Portanto,
impossíveis de serem codificadas, pois um código é sempre forma, constância, conjunto
de regras e padrões estáveis.

Lembre-se que, em seus primeiros livros, Bell apresentava-se como poeta que denunciava
a perda de laços de fraternidade e de densidade humanística em nossa sociedade.

Uma característica deste livro em contraste com os dois anteriores, é a sua descontinuidade
aparente. As Annamarias e As vivências elementares são quase
um poema só, divido em partes, algo como variações sobre o mesmo tema. Aqui, não:
temos partes bem distintas, coexistindo poemas, enfermidade, efemeridade, com
outros lineares e despojados, parecendo até uma abdicação do uso de determinados
recursos poéticos. E outros, ainda, que se caracterizam pela brevidade e concisão,
como na série Minifúndios.

Ou seja, onde seus dois livros anteriores têm uma estrutura fechada, quase com começo, meio e fim, desta vez temos
uma obra que, mesmo conservando sua unidade, também apresenta algo de incluso e aberto – justamente por registrar
uma passagem, um processo de transformação.

O código das águas é poesia em movimento e este movimento é ultrapassar-se, ir além. E, principalmente, ir mais
fundo.

Alguns textos remetem igualmente ao não mais existente e ao imemorial, como o Inseto de Lagoa Santa, ou o índio do
veemente Poema para o Índio Xokleng, que ’emudeceu entre castanhas, bagas e conchas/ de seus colares de festa’.

A linguagem para falar do imemorial e do anterior à memória também é outra: requer
uma palavra anterior à palavra. Este é um tema constante, que atravessa o livro:

‘Não é a palavra fácil/ que procuro. / …/ Procuro a palavra fóssil./ A palavra
antes da palavra./ …/ Esta que me antecede / e se antecede na aurora/ e na origem
do homem’. Por isso, ‘procuro desenhos/ dentro da palavra./…/Sinais, vendavais,silêncios./
Na palavra enigmam restos, rastros de animais, / minerais da insensatez’. Não
mais ‘mero esboço de um desenho inacabado de homem, / inadequado, por certo, na
forma de chegar e falar / das coisas do mundo e de mim’.

Busca-se, portanto, a escrita primordial, rastro e inscrição e ao mesmo tempo, movimento: ‘Entendi a escrita minha / ao
entender a escrita da andorinha’, pois ‘tudo que penso / pouco mais dura que a escrita,/ a da raiz, a da marca do pé na
terra, / que mino, rumino,/ e que me habita’.

Há passagens que são verdadeiras profissões de fé ou declarações de princípios poéticos, que, na sua visão da escrita,
como se despojar e deixar de ser, aproximam-se do que Elliot diz nos Quatro Quartetos: ‘Para possuíres o que não
possuís / Deves seguir pelo caminho da despossessão./ Para chegares ao que não és / Deves seguir pelo caminho onde
não estás. / E o que não sabes é a única coisa que sabes / E o que possuis é o que não possuis / E onde estás é
onde não estás’.

A trajetória de Bell é um caminho na direção de um território insondável, ‘ a face inversa da luz / onde me extravio / e não
cessarei jamais. / Pois menor que meu sonho / não posso ser’. Isto implica viver o ‘Desterro. Desterra./ ali se resume a
vida. / e nada é em vão./ Ainda que pareça o contrário’. Percebe-se, lendo O Código das Águas, como Lindolf Bell sabe
que o caminho da poesia é um caminho da perda, percorrendo o avesso e a negação da realidade instituída e aceita.
Tudo isso faz que acompanhemos com enorme interesse o prosseguimento de sua obra poética, os ganhos obtidos
percorrendo o caminho da perda e da despossessão.

A poesia belliana é a poesia do sonho e pode ser interpretada como a genuinamente blumenauense, pois apesar da
realidade que a cerca e dela exige mais realidade, continua imersa em nuvens brancas:

Se me quereis longe da paixão:
tirai o cavalo da chuva

Pois menor que meu sonho
Não posso ser.
(“Poema do Andarilho”, in O Código das Águas)

Textos selecionados:

PROCURO A PALAVRA PALAVRA

Não é a palavra fácil
que procuro.
Nem a difícil sentença,
aquela da morte,
a da fértil e definitiva solitude.
A que antecede este caminho sempre de repente.
Onde me esgueiro, me soletro,
em fantasias de pássaro, homem, serpente.

Procuro a palavra fóssil.
A palavra antes da palavra.

Procuro a palavra palavra.
Esta que me antecede
E se antecede na aurora
De na origem do homem

Procuro desenhos
dentro da palavra.
Sonoros desenhos, tácteis,
Cheiros, desencantos e sombras.
Esquecidos traços. Laços.
Escritos, encantos re-escritos.
Na área dos atritos.

              Dos detritos.
Em ritos ardidos da carne
e ritmos do verbo.
Em becos metafísicos sem saída.

Sinais, vendavais, silêncios.
Na palavra enigmam restos, rastos de animais,
Minerais da insensatez.
Distâncias, circunstâncias, soluços,
Desterro.

Palavras são seda, aço.
Cinza onde faço poemas, me refaço.

Uso raciocínio.
Procuro na razão.
Mas o que se revela, arcaico, pungente,
eterno e para sempre, vivo,
vem do buril do coração.

XIX

Onde a morte se fere de si mesma
Onde a morte morre
Onde o corpo se inscreve
Nas linhas sinuosas da alegria

Ali meu coração bate
Sem falas guaranis
Nem pampas latifúndios

Meu coração
Não passa de um minifúndio
E minha linguagem
Chama-se viver

DESTERRO

I

Aqui estou
Em pleno século XX
Desterrado por Platão.
Dentro do círculo da vida
Nõa mais aberto
Que um não.

Que faço neste tempo
Entre terra e céu de ironia?
Em coração caracol
E tempo de uvas verdes?

Faço um poema.
Me desfaço.
Me desfaço como um laço
De uma caixa de presentes vazia.

Enquanto me desfaço no poema
Afino o sentimento do mundo:
Desterro se faz de nenhum lugar.
E só se faz de saudade.

POEMA MATEMÁTICO

Me somo
E fico um
Me multiplico
E permaneço um.

Me divido.
E continuo um.
Me diminuo.
E resto um.

Me escrevo
E sou nenhum.


ASA DA PRIMEIRA IDADE

Longe de mim
Como a mais distante estrela.
Próxima de mim
Em meus olhos [e coração] Que me permitem vê-la.

Pouco sobra da vaidade,
Da divisão dos tempos,
Da distribuição de afetos.

Ensina-me sobra, sombra, terra,
Aonde me perdi.
Ensina-me do orvalho
Que umedece o sonho de perfeição
Que não esqueci.

A minha aldeia chama-se:
Ninho de liberdade.
Mas onde terá ficado a asa
Da primeira idade?

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