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Quarup, de Antônio Callado

by Lucas Gomes

Publicado em 1967, Quarup é o livro mais famoso de Antônio
Callado. Romance pós-moderno, recicla narrativas míticas e históricas,
e fontes temáticas que construíram a imagem negativa do país
como uma nação de preguiçosos, doentes, e ao mesmo tempo
elabora uma imagem otimista de constante invenção do Brasil. Este
romance dos anos 60 emerge como voz do Terceiro Mundo – a fala simbólica
do pós-colonizado – liberação de energias, cintilações
de otimismo e frustração diante do novo cenário que se
desenrolava no horizonte. Vivia-se o período em que o discurso pós-colonial
se articulava com as falas emancipadoras do Primeiro Mundo – em que estudantes
e intelectuais se revoltavam contra paradigmas teóricos e políticos
anacrônicos.

Os conflitos indígenas no Norte, o golpe militar de 1964, a mobilização
estudantil, a mudança de postura por parte da Igreja Católica
ante as mazelas do país: por meio desses e de outros temas, Callado constrói
um vasto painel das tensões de sua época em Quarup
nome do ritual indígena que celebra os mortos e os traz de volta à
vida.

O romance de Callado é estruturado quase que integralmente sobre o diálogo,
ou seja: é a opinião objetiva que dá forma aos indivíduos.
Por este processo, Nando se torna praticamente o retrato do Brasil que, por
sua vez, também constitui um espaço vazio a ser “ocupado”.

No romance estão todos os assuntos que então dominavam o debate
político e existencial: o suicídio de Vargas, a renúncia
de Jânio Quadros, a publicação da encíclica Mater
et magistra de João XXIII, o movimento político-militar de 1964,
a fundação das Ligas Camponesas e dos Sindicatos de Trabalhadores
Rurais, a eleição do Governador Miguel Arraes em Pernambuco, a
organização e mentalização popular pelo Partido
Comunista e grupos trotskistas, a revolução sexual, o feminismo,
a proteção aos índios, a guerrilha, as drogas etc.

Escola literária

Numa visão tradicional e cronológica, o romance e o autor devem
ser encaixados na Terceira Geração Modernista (de 45 aos dias
atuais). Quarup pode ser considerado um romance de formação
por, principalmente, retratar o protagonista, padre Nando, que tenta através
da religião, resolver seus conflitos diante de um mundo conturbado, mas
percebe a distância entre a sua fé e as necessidades do dia a dia,
sobretudo as dos não privilegiados, e diante disso verifica que precisa
mudar seus propósitos para buscar sua identidade. Basicamente, o conflito
resume-se na insuficiência, na incapacidade da ação humana
contra a injustiça de uma sociedade.

Foco narrativo

Quarup possui foco narrativo em terceira pessoa e seu narrador é
onisciente, uma vez que penetra o “lado de dentro “de suas personagens,
invadindo a intimidade de seus pensamentos, revelando ao leitor o mundo interior
de cada uma delas.

Estrutura da obra

O romance está organizado estruturalmente em 7 partes, assim divididas
sob a forma de 7 enormes capítulos:

1. O Ossuário;
2. O Éter;
3. A Maçã;
4. A orquídea;
5. A palavra;
6. A praia;
7. O mundo de Francisca.

Estas partes que compõem a obra de Antonio Callado não escondem
a estreita relação com a realidade histórica. Cerimônia
funeral, a festa do quarup que dá título ao romance de Callado
é ritual através do qual a tribo uilapiti retoma o tempo sagrado
da criação da vida associado ao deus Maivotsinim.

Tempo

O tempo narrativo, que permeia os 7 capítulos, é o cronológico
e as ações acontecem num período de dez anos: inicia-se
no governo Getúlio Vargas eleito pelo voto direto , na década
de 50 e termina em 1964, em pleno governo militar, logo após a deposição
de João Goulart e o início das torturas e perseguições
por parte da junta Militar presidida por Castelo Branco. Esses dez anos são
o cenário brutal de um tempo duro para o Brasil, um tempo amargo, difícil
, em que os homens, quer das Ligas Camponesas, quer pós golpe militar,
tiveram que viver a carne viva de seus sonhos.

Espaço

Os espaços narrativos são Pernambuco, onde se inicia a ação,
Rio de Janeiro, para onde Nando se desloca em busca de ir para o Xingu, e o
Xingu esquecido das autoridade, sobretudo Getúlio Vargas, que prometera
demarcá-lo.

Resumo

A história, que começa no início do governo Getúlio
Vargas e vai até as primeiras perseguições e torturas impostas
pelo regime militar, toma lugar entre as reservas indígenas na região
do Xingu. É lá que o protagonista, padre Nando, integra-se à
realidade conflituosa que aflige a população local, composta principalmente
de índios. A esse cenário somam-se as instabilidades íntimas
que atingem o próprio padre. Após ter se entregado ao amor carnal
e às drogas, ele se apaixona por Francisca, que o recusa. Aos poucos
abdica dos limites da religião, dedicando-se cada vez mais às
causas locais.

No tempo em que Nando ainda vivia num mosteiro, sem animar-se a sair em busca
da sua utopia, conheceu Francisca e o noivo desta, Levindo, jovem estudante
que trabalhava junto às nascentes Ligas Camponesas. Nando passou então
a amar platonicamente Francisca e temia não resistir, quando fosse conviver
com os índios, à visão das índias nuas, pecando
assim contra o voto de castidade que fez como sacerdote. Winifred, uma amiga
inglesa de Nando, resolveu tirá-lo do impasse em que se encontrava oferecendo-se
a ele. Uma vez mantidas relações sexuais com uma mulher, Nando
estava pronto para enfrentar as outras que apareceriam no seu caminho e pronto
para partir.

Antes de chegar ao Xingu passou pelo Rio de Janeiro, onde conheceu pessoas
ligadas ao Serviço de Proteção aos Índios: Ramiro,
o chefe, Vanda, sua sobrinha e secretária, Falua, jornalista e amante
de Sônia (por quem Ramiro alimentava grande paixão), Olavo e Lídia,
do Partido Comunista, e Fontoura, chefe do Posto Capitão Vasconcelos,
no Xingu, e grande amigo dos índios, cuja cultura tentava preservar da
destruição causada pela civilização e pelo progresso.
Conhecendo-os, Nando conheceu também desde jovens mulheres como Vanda
até as sensações e “viagens” provocadas pelo
cheiro de éter, nas sessões de lança-perfume de que participava
com Ramiro e os outros. Fontoura, entretanto, revelou-lhe uma dura realidade:
a triste situação dos índios, sua pobreza, doenças,
sua condição de condenados pelo Brasil “civilizado”
que investiu sem tréguas, alterando suas vidas, roubando-lhes as terras
e a tranquilidade.

Do Rio, Nando partiu para o Xingu. A época era 1954, em plena fase do
atentado contra Lacerda e dos últimos momentos do governo de Getúlio
Vargas. Em Fontoura e em todos no posto do SPI, uma grande expectativa: a presença
de Getúlio, que viria para inaugurar o Parque Nacional do Xingu, assegurando
a preservação das terras indígenas. Enquanto esperavam,
ajudavam os índios a preparar sua grande festa aos mortos: o Quarup,
que, entre outras cerimônias ritualísticas, é constituído
de uma grande comilança. Entre lances de caça, pescas, banhos
de índios nus e perseguições de Ramiro à Sônia,
chegava ao Xingu pelo rádio a notícia do suicídio de Getúlio,
e morreu em Fontoura a esperança de ver o posto transformado em parque.
Cansada das encrencas dos homens brancos, Sônia fogiu com Anta, um índio
bonito, forte e preguiçoso, para desespero de Ramiro e Falua.

Na parte seguinte do romance, a história tem continuidade ainda no Xingu,
mas muitos anos depois, quando todos se reencontraram, menos Sõnia, numa
expedição ao centro geográfico do Brasil. Participou também
Francisca, que voltara da Europa e perdera o noivo Levindo, morto pela polícia.
Reacendeu-se então o amor de Nando, que se descobriu correspondido por
Francisca. Dessa vez as coisas não ficaram no amor platônico, mas
chegaram ao contato sexual, no centro da floresta virgem, em meio a orquídeas
coloridas.

Cada uma com suas obsessões, prosseguiram todos na expedição.
Ramiro, por exemplo, tinha sempre a esperança de encontrar Sônia,
vivendo em alguma tribo. Depois de vários riscos, fome e extravios no
meio da floresta, enfrentando tribos ferozes ou doentes e famintas, o grupo
chegou ao centro geográfico, onde foi fincado um marco. Autodestruído
pela bebida, pois perdera as esperanças de salvar os índios, Fontoura
morreu em pleno centro geográfico, com o rosto sobre o grande formigueiro
que corroia o Brasil, desde o seu coração.

Francisca levou terra do centro geográfico para Pernambuco, cumprindo
uma promessa feita a Levindo, antes da morte deste. Nando renunciou ao sacerdócio
e voltou a Pernambuco com Franscisca, que passou a trabalhar na alfabetização
de camponeses. Antes disso, os dois desfrutaram uma espécie de lua-de-mel
no Rio de Janeiro. De volta a Recife, porém, Francisca resolveu afastar-se,
sacrificando-se pela memória de Levindo. Nessa época, a luta dos
camponeses ganhara força, sob o governo de Miguel Arraes, ao qual entretanto
se opunha Januário, o líder do movimento. Nando resolveu ajudar
no trabalho das ligas. Com o golpe militar de 31 de março de 1964, Goulart
foi deposto e, em Pernambuco, Arraes era afastado. Várias prisões
foram feitas, os líderes perseguidos. Nando foi parar na cadeia, onde
sofreu interrogatórios e torturas mais morais do que físicas,
especialmente se confrontadas com o sofrimento dos camponeses, antigos companheiros
de luta. Quando o soltaram, Francisca havia partido novamente para a Europa.
Nando recolheu-se então à sua casa da praia (herança de
seus pais) e se entregou a uma espécie de “apostolado do amor”.
Tendo finalmente aprendido com Francisca a arte de amar, de maneira a dar prazer
à mulher amada, ele agora distribuía amor, fazendo sentirem-se
belas as mulheres mais feias e ensinando as técnicas amorosas a vários
“discípulos” seus. Era pescadores que resolveram segui-lo
nessa “nova cruzada”, para grande espanto e escândalo de seus
antigo companheiros de luta política, em vias de organizarem novamente
o movimento revolucionário, desta vez no sertão.

No décimo aniversário da morte de Levindo, Nando resolveu comemorar
a data com uma espécie de réplica do Quarup, um banquete com todos
os amigos, pescadores, prostitutas e antigos companheiros de ligas. A cena do
grande jantar (espécie de ritual em que se devorava antropofagicamente
a figura de Levindo) foi simultânea à grande Marcha da Família
com Deus pela Liberdade. Os participantes da marcha, juntamente com a policia,
invadiram a festa: muitos são presos, alguns fogiram e Nando foi espancado
quase até a morte.

Socorrido por uma prostituta amiga e por Manuel Tropeiro, antigo companheiro
de luta, Nando foi levado para a casa do padre Hosana, onde se recuperou e decidiu
partir com Manuel Tropeiro para o sertão, voltar às lutas. Antes,
porém, passou por sua casa, onde encontrou cartas de Francisca, e a polícia
que o espreitava. Conseguindo matar os guardas, despediu-se de Recife e da própria
Francisca, que agora não era mais a mulher de carne e osso. Ela era o
“centro de Francisca”, explicou Nando a Manuel e ao leitor. Como
precisou mudar de nome, adotou o de Levindo e tudo indicava que a história
se repetiria. Entretanto, o romance termina numa nota alta de otimismo no futuro
que aguardava os dois heróis, com Nando vendo “o fio fagulhar ligeiro
entre as patas do cavalo como uma serpente de ouro em relva escura”.

O que deve ser observado

– O quadro histórico – traçado com bastante nitidez –
tem peso direto no desenvolvimento da narrativa, abrangendo acontecimentos que
transcorrem do governo democrático de Getúlio Vargas ao ditatorial
de Castelo Branco. O escritor parece alimentar a idéia de fazer de Quarup
uma suma da sociedade brasileira nas décadas de 1950 e 1960, na linha
dos romances totalizantes do realismo europeu do século XIX.

– O resultado do ambicioso projeto de Antônio Callado, todavia, é
problemático. Há no romance um tal acúmulo de ações,
muitas das quais inúteis ou inverossímeis, uma tal profusão
de caracteres mal trabalhados, a começar pela própria psicologia
do padre Nando – que passa da castidade ao furor orgíaco com a
maior naturalidade e sem nenhum drama interior – que a impressão
final do leitor é de perplexidade. Como numa montanha-russa, Quarup
alterna vertiginosamente altos e baixos, acertos esplêndidos (algumas
cenas eróticas, as passagens em que os brancos representam o apocalipse
para os indígenas e a construção dramática do impasse
do sertanista Fontoura ao se dar conta que “contatar” os índios
era necessariamente destruí-los), e passagens menores, quase ridículas
(Nando assumindo a condição de professor de sexo, a cosmopolita
Sônia fugindo da civilização e embrenhando-se nos confins
da floresta com um índio etc).

– Outro aspecto questionável em Quarup é a tentativa
do autor de mesclar um estilo real-naturalista com freqüentes monólogos
interiores e certos delírios verbais que hoje parecem gratuitos. O resultado
desta mistura nem sempre é literariamente equilibrado e convincente.

– Um elemento positivo do romance e que funciona como representação
artisticamente fiel da realidade é a “desalienação”(Ferreira
Gullar) de Nando, que deixa de sonhar com uma utopia indianista e passa a lutar
pelos desvalidos nordestinos. Este processo traduz claramente as mudanças
que se verificam na Igreja, na década de 1960, com a crescente politização
de seus sacerdotes.

– A proposição melhor realizada do romance é a identificação
do centro do país não apenas como metáfora da plena integração
nacional, mas também da descoberta de um sentido de vida para cada personagem
que participa da expedição ao Xingu. Estabelece-se, assim, uma
ligação umbilical entre as existências individuais e o destino
do Brasil. Por isso, a morte do sertanista Fontoura com o rosto enfiado dentro
do grande formigueiro, onde ficará o marco do centro do país,
é a derrocada simbólica de um sonho de unidade e de desenvolvimento
da nação e um augúrio pessimista a respeito dos acontecimentos
que, na década seguinte (1960), traumatizariam os brasileiros.

Créditos: Lígia Chiapini Moraes Leite, Lit. Comentada,
Abril Cultural, 1988 | Colégio Atenas | Francisco Venceslau
dos Santos
(UERJ)

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