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Rosaura, a Enjeitada, de Bernardo Guimarães

by Lucas Gomes

Em Rosaura, a enjeitada – o último romance publicado em vida de Bernardo
Guimarães, publicação datada de 1883 – encerra uma particularidade preciosa, que
o extrema de todos os outros: é que nele inseriu o escritor ouropretano notas
curiosas sobre si mesmo, bem como sobre dois dos seus mais diletos companheiros
do curso acadêmico e de glória na poesia brasileira.

Quem quer que conheça as biografias da tríade famosa,
facilmente verá com que fidelidade Bernardo se auto-retratou nas páginas desta
obra, onde figura de Belmiro, mal disfarçando Aureliano Lessa e não ocultando
Álvares de Azevedo, senão a primeira parte desse cognome.

Além de pôr em evidência as suas prendas de hábil tocador de
violão e exímio cantador de modinhas sentimentais ou humorísticas, diz ele de si
próprio, no capítulo V, que era “alto, corado, de cabelos pretos… e cara de
lobisomem
(atribuindo, todavia, esta última observação ao autor da Noite
na Taverna
); posto que não disforme, não era bonito; como estudante
pobre, que era, não podia trajar-se com a elegância e primor de seus
companheiros; de mais a mais, era sumamente ingênuo e acanhado, e muito pouco
afeito a esses jogos de espírito, a esses galanteios delicados e lisonjeiras
frivolidades, que tanto agradam às moças…
“. E conclui asseverando que
também era um “temperamento sanguíneo, ardente e impressionável, abandonando
a alma às emoções do momento
“.

De Álvares Azevedo assim fala nos capítulos I e VI: “Era
um belo mocinho moreno, de pequena estatura, de fisionomia radiante e
prazenteira, a fronte larga, onde fulgurava o gênio, como na de Aurélio

(Aureliano Lessa); tinha, porém, “a imaginação sempre sinistra e propensa ao
lívido e ao fúnebre..
.”

É preciso ler a maior parte do começo do romance, para que se
veja com que exatidão ele retratou os seus dois inseparáveis amigos, com um dos
quais (Álvares de Azevedo) entrou em competição amorosa, por causa da tentadora
Adelaide.

Parece que Bernardo esboçou Rosaura, a enjeitada ainda
no seu tempo de estudante da faculdade paulista, compondo e retocando mais tarde
a obra, quando resolveu entregá-la ao prelos. Bernardo Guimarães apresenta a
personagem Rosaura do seguinte modo: cabelo da cor de azeviche, pele cor de
jambo, mestiça de origem irregular, amada por um jovem branco de boa família.

Não são apenas os protagonistas do romance que se acham bem
focalizados, ao seu aspecto moral, no meio físico, e ambiente social. As
próprias personagens secundárias são desenhadas com um admirável poder de
sugestão. Além dos estudantes, cujo caráter se inspirava, ao tempo, no
deliqüescente exemplo, teórico e prático, de Byron, Musset e Espronceda,
conglobou o autor as virtudes e vícios do orgulho paulista no major Damasio e em
Conrado as energias fecundas de um descendente dos bandeirantes, subindo, mercê
do estímulo pujante da paixão por Adelaide, da miséria à riqueza.

A ampla e rigorosa descrição da Paulicéia, qual era em meados
do século XIX, merece ser lida ainda hoje, para confronto com a radical
transformação que lhe imprimiu o seu vertiginoso progresso. A obra é importante
não pelo abolicionismo, mas por ser o único romance que descreve a cidade de São
Paulo antes do enriquecimento pelo plantio do café.

Há neste livro a delineação de costumes da época, o registro
de vocábulos e expressões, quer peculiares da terra de Amador Bueno. Assim, os
tratamentos “nhô” e “mecê” e a interjeição “ché!”, ainda vivos no idioma
familiar e vulgar de S. Paulo, e os modismos “capira”, “estrepolia”, “paréba”
(por peréba), “pesticar de música”, “engulir araras”, “futrica”, “grosar na
pele” (falar mal de alguém), “chuchas caladas”, “frango nuélo”, para só fazer
citação dos mais importantes.

Nas comparações, ainda recorrer aos elementos nacionais:
“tagarelas, com um bando de maritacas”; o Tietê correndo como jibóia
preguiçosa”; “teimoso como a anta disparada pelo mato, esbarrando furiosamente
em quanto obstáculo encontra e levando tudo de vencida”; e, finalmente, “paixão
antiga é como gameleira: por mais que se corte, sempre fica uma raizinha, que
brota de novo” (outra linda e expressiva imagem!).

No capítulo IV, epigrafado Entre as jaboticabeiras,
eis como Bernardo Guimarães parodiou os dois conhecidos versos de Malherbe sobre
a efêmera existência das rosas:

Jaboticaba, ela viveu somente
Como a jaboticaba;
Foi comida e deixou só a semente:
Assim tudo se acaba

Em Rosaura, a enjeitada, além dos traços gerais de
A escrava Isaura
, há uma repetição de O Garimpeiro, na utilização do
Sincorá, onde então se exploravam diamantes. Bernardo Guimarães tinha, como
escritor, suas muletas e bordões. Deixo de indigitá-los, para não alongar
demasiadamente esta rápida apreciação das suas obras. Não se importava também
com a reiteração de imagens, pois a comparação do Tietê com a jibóia é a mesma
do Paranaíba, no Ermitão do Muquém.

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