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Sargento Getúlio, de João Ubaldo Ribeiro

by Lucas Gomes

Análise da obra

Considerado sua obra-prima e já traduzido em várias línguas, Sargento Getúlio, escrito durante a
década de 1960 e publicado em 1971, narra a história de Getúlio, um sargento da Polícia Militar de um
destacamento sediado em Aracaju, Sergipe. De família pobre, Getúlio trabalha como feirante e engraxate para
sobreviver, tornando-se depois soldado. Tendo assassinado a mulher, que o traíra com outro, busca a
proteção de um chefe político de Aracaju, ao qual passa a servir como “cabo eleitoral”. A mando dele
executa “vinte trabalhos” (mortes). Mesmo pretendendo aposentar-se, aceita nova missão, a de prender, no
interior, um adversário político do chefe. Cumprida a tarefa, Getúlio começa a viagem de retorno a Aracaju,
momento em que se inicia a narração em primeira pessoa, que termina com a morte do protagonista.

Sobre este romance, João Ubaldo, afirma: Sargento Getúlio é um romance engajado — persegui esta espécie
de autobiografia fantasmagórica, mas com maior distância. É, de certa forma, um retorno à minha infância,
ao universo de Sergipe, com sua brutalidade, seu primitivismo ao qual dei uma dimensão mais ampla — ética e
política
. (Entrevista, 1987).

João Ubaldo ainda afirmou não ter jamais aspirado mudar coisa alguma na sociedade; talvez na cabeça de
algum leitor. Como toda a arte, a literatura é uma forma de conhecimento, podendo, pois contribuir para que as
pessoas vejam o mundo através de uma forma sugerida pelos escritores. A literatura pode, portanto, auxiliar
na construção do conhecimento humano, abrindo portas. Se a literatura é invenção, a existência humana
também o é
.

O engajamento de que fala João Ubaldo se realiza de forma muito sutil e, em nenhum momento, compromete o
valor literário do texto desta obra. Deste modo, Sargento Getúlio, escrito em 1971, não é um livro
datado, resistindo ao passar dos anos. Segue desafiando os leitores por conseguir, partindo de uma temática
regional — o banditismo do sertão —, atingir o universal através do questionamento existencial. O “ser ou
não ser: eis a questão” shakespeareano se transforma, na pena do escritor baiano, em “levar ou não levar”o
prisioneiro a Aracaju, tarefa confiada a Getúlio por seu chefe Acrísio. O autor valoriza ao mesmo tempo o
pensamento mágico e popular do nordestino, associando seu impasse existencial ao de grandes personagens da
literatura ocidental, como Hamlet, de Shakespeare, ou Antígona, de Sófocles. Esta é uma forma bastante
sutil de compromisso literário: para denunciar uma situação de desmedida no sertão nordestino onde o poder
despótico de líderes políticos não tem limites, aliciando os jagunços que torturam e matam em seus nomes,
João Ubaldo centra a narrativa justamente em um matador profissional, o famigerado Sargento Getúlio,
procurando flagrar, através do seu dilema, um mundo em transição.

O autor estrategicamente vai encontrar uma saída para que a obra não se esgote na batida dicotomia
civilização x barbárie, cidade x campo, apontando uma terceira via para situar o dilema do “herói”, em sua
decisão de não acatar as ordens de Acrísio de abortar a “missão” que lhe havia sido confiada. Para além da
simples denúncia de uma situação de atraso ainda vigente no sertão nordestino enquanto o Brasil se
modernizava, o autor complexifica a situação heroicizando a figura de Getúlio, matador profissional,
portanto fora-da-lei, e conferindo-lhe uma espessura de personagem trágica. Ao recusar-se a cumprir as
contra-ordens de seu chefe e ao obstinar-se em executar sua missão a personagem surpreende o leitor, até
então horrorizado com as brutalidades que pratica em relação ao prisioneiro. A surpresa vem do inesperado
de um personagem rude possuir e respeitar um código de ética comparável a de personagens do teatro clássico
grego e que se verifica inexistente nos líderes políticos corruptos que lhe dão ordens, ficando evidente
que são esses últimos e não Getúlio o alvo da crítica mordaz de João Ubaldo. O respeito a essa deontologia
internalizada coloca Getúlio em um patamar superior ao dos chefes políticos e citadinos que o comandam.

Verifica-se, pois uma tentativa do autor de penetrar na lógica “outra” de Getúlio que, inserido no mundo
arcaico do sertão, rege-se por um pensamento mágico e sacralizado, não conseguindo entender as mudaças que
se operam no Brasil moderno, regido por uma ordenação racional e utilitarista. Neste sentido, a produção
ficcional de João Ubaldo Ribeiro constrói-se em consonância com o que há de melhor na literatura
latino-americana, como Cem anos de solidão (1967) de Gabriel Garcia Marquez. Na visão do autor colombiano,
uma comunidade, Macondo, é varrida do mapa por um furacão junto com toda a geração dos Buendia,
simbolizando o desaparecimento da cultura autóctone, alicerçada no maravilhoso. No choque entre o mágico e
o racional, entre o arcaico e o moderno, o coronel Aureliano Buendia e sua numerosa decendência desaparecem
sem desaparecer, pois suas peripécias ficam preservadas na memória da comunidade. Getúlio, como Aureliano
Buendia, encarna o dilaceramente entre dois mundos. Ambos acabam, ao morrer, desafiando as exigências da
modernização, por virar lenda, isto é, tendo suas histórias transmitidas pela tradição oral e popular, o
que é uma maneira de não morrer.

Como pode-se observar, Sargento Getúlio é uma narrativa de complexa formulação pois está centrada em um longo monólogo
(quebrado por alguns diálogos) do sargento da Polícia Militar do Sergipe, Getúlio Santos Bezerra. Sua
linguagem é a “variante caboclo-sertaneja”, da qual já se valera Guimarães Rosa, porém acrescida de
inúmeros vocábulos do padrão culto do idioma, adulterados pela fala ingênua e criativa do
protagonista-narrador: “esguincho”, “almospenados”, “sinfetar”, “consumições” etc.

Ao figurar a voz do Sargento Getúlio, João Ubaldo Ribeiro procura torná-la expressiva do mundo interior do
personagem – de sua perspectiva, de seu modo de pensar e de “enxergar a realidade”. Para concretizar seu
intento, João Ubaldo propõe uma situação narrativa que se apóia na “fala” de Getúlio. Optando por encenar
tal fala, o escritor se vale de modismos e fórmulas populares, nem sempre se distinguindo as expressões de
uso geral das contribuições nitidamente regionais – misturando-se a ambas, ainda, as que resultam da
“invenção” do escritor. Essa oralidade construída por João Ubaldo Ribeiro constitui um dos recursos mais
eficazes para a figuração da identidade existencial e social do seu personagem: servindo-se dos processos
expressivos comuns à linguagem falada – como a intensificação e a repetição -, o escritor imprime ao relato
de Getúlio um tom extremamente brutal, que reflete com agudeza a enorme carga afetiva que ritma a fala de
Getúlio.

Entretanto, a voz do Sargento Getúlio não lhe assegura um destino diferente daquele reservado à “muda”
nordestina: Getúlio também morre justamente no momento em que se insurge como sujeito, arriscando-se a
construir uma história própria. Sob esse viés – ao qual se acrescenta o da “resistência inconceptível” -,
Macabéa e Getúlio revivem o destino dos sertanejos retratados em Os sertões, dizimados pelo Brasil
litorâneo quando buscavam a concretização de um projeto afeito às peculiaridades do Brasil interior.

Defendendo a individualidade e a autonomia que acabara de conquistar, o Sargento Getúlio enfrenta, sozinho
– resistindo até a exaustão -, o cerco que lhe fazem os soldados do governo. Desta forma, o sertanejo
Getúlio constitui uma outra versão do “lutador fantástico” que desafiava de modo tão cabal os esquemas
interpretativos de Euclides da Cunha, em Os sertões.

Na figuração do sertanejo proposta por João Ubaldo, é o “lutador fantástico” Getúlio que fala, desvendando
a visão de mundo e o imaginário do jagunço sertanejo. Num discurso ininterrupto e tortuoso, Getúlio
desvela, então, sua valentia e crueldade, suas contradições e fragilidade – aspectos que, característicos
da plebe rural brasileira, traçam igualmente o retrato do sertanejo feito anteriormente por Euclides da
Cunha.

Muito semelhante a O coronel e o lobisomem, seja na linguagem, marcada pela variante
caboclo-sertaneja, seja na estrutura narrativa, pois, como o coronel Ponciano, Getúlio narra sua própria
morte, a obra de João Ubaldo Ribeiro apresenta também um claro conflito entre o mundo da cidade e o do
sertão. Produto deste, Getúlio não entende as manobras dos políticos e marcha de forma inevitável para o
trágico fim.

Getúlio é jagunço (“cabo eleitoral”) de um importante chefe político de Aracaju, Acrísio Antunes, para quem
já efetivara “vinte trabalhos”, isto é, vinte mortes. Quando cogita se aposentar, recebe sua última
incumbência: prender um adversário político do interior de Sergipe, (um udenista), e levá-lo para Aracaju.
Getúlio narra então – não sabemos exatamente para quem – as peripécias da viagem e a sua própria vida.
Através dos longos fluxos de consciência do sargento e sob relativa desordem temporal, sabemos que ele era
de origem pobre, trabalhara como engraxate e feirante no interior, tornando-se depois soldado. Tendo
assassinado a mulher, que o traía, buscara a proteção de Acrísio Nunes, sendo por sua lealdade contemplado
com as divisas de sargento da polícia militar.

No plano presente, Getúlio avança com o prisioneiro do sertão para o litoral. Viajam num velho automóvel,
um “hudso”, dirigido por Amaro, motorista e amigo inseparável do sargento. Como jagunço, o narrador nada
pode ou quer interrogar. Só conhece ordens, as quais deve obedecer. Socialmente, ele é uma vítima do
coronelismo ainda remanescente na década de 1950, quando se passa a ação do romance. Individualmente, é um
exterminador, corajoso, fiel, inocente, alternando gestos de incrível violência com explosões de
humanidade.

O trágico é que Getúlio precisa avançar sempre, incapaz de entender que, em Aracaju, seu chefe, pressionado
pela imprensa e por autoridades superiores, resolvera emitir contra-ordem, mandando libertar o prisioneiro.
O jogo político e as mudanças que se verificavam no país são incompreensíveis à mente rústica do sargento,
que resolve levar a cabo sua missão de qualquer maneira. Neste momento, e sem que ele saiba o porquê, virou
um estorvo e precisa ser eliminado.

Uma das cenas marcantes do romance ocorre quando o padre – também ligado à brutalidade do universo
sertanejo – adverte Getúlio, a quem admira, de que este deve sumir. A resposta do sargento vem num jorro de
palavras que traduzem sua perplexidade:

Eu sumir, eu sumir? Como que eu posso sumir, se primeiro eu sou eu e fico aí me vendo sempre, não posso
sumir de mim e eu estando aí sempre estou, nunca que eu posso sumir. Quem some é os outros, a gente nunca.
(…) Depois o chefe me mandou buscar isso aí, e eu fui, peguei, truxe, amansei, e vou levar mesmo porque
que o chefe agora não possa me sustentar, eu levei o homem, chego lá entrego. Entrego e digo: ordem
cumprida. Depois o resto se agüenta-se como for, mas a entrega já foi feita, não sou homem de parar nomeio.
(…) Nem que eu estupore. Quero ver esse bom em Aracaju que me diz que eu não posso, porque eu sou Getúlio
Santos Bezerra e igual a mim ainda não nasceu. (…) Corro, berro, atiro melhor e sangro melhor e luto
melhor e brigo melhor e bato melhor e tenho catorze balas no corpo e corto cabeça e mato qualquer coisa e
ninguém me mata. E não tenho medo de alma, não tenho medo de papafigo, não tenho medo de lobisomem, não
tenho medo de escuridão, não tenho medo de inferno, não tenho medo de zorra de peste nenhuma.

Após vários acontecimentos sangrentos, que passam inclusive pela degola de um tenente que fora detê-lo,
Getúlio, sempre arrastando o “udenista-comunista”, aproxima-se de Aracaju. Por vezes, perde a lucidez e
mergulha em delírios. Chega a imaginar que tem a seu lado um magnífico exército, cujo comandante é tão
valente que persegue São Jorge pelo sertão sergipano. Nas imediações de Aracaju, enfrenta uma força militar
que termina por abatê-lo. Surpreendentemente, o sargento narra a sua própria morte.

Getúlio sai de casa, isto é, de um mundo arcaico, regido por um código semi-feudal de conduta e marcha para
um outro mundo, o urbano, onde se celebram acordos e pactos políticos completamente absurdos para sua mente
sertaneja. Esta é a viagem mais profunda do romance. Uma viagem entre dois tempos históricos diversos que
se chocam sem alternativas de conciliação.

José Hildebrando Dacanal, o principal analista desta perturbadora narrativa, mostra o caráter trágico de
Getúlio: A inevitabilidade de sua trajetória. O protagonista percebe que a realidade foge-lhe aos pés, mas
não pode recuar:

Não gosto que o mundo mude, me dá uma agonia, fico sem saber o que fazer.

Avançar rumo ao litoral com um homem que não interessa mais ao chefe político manter como prisioneiro é o
destino de Getúlio. Para ele, as ordens de Acrísio só podiam ser desfeitas pelo próprio Acrísio. É um
código de honra que não tem mais sentido no Brasil urbano. Preso a valores condenados pela modernização do
país, só resta ao sargento a autodestruição. E ele morre como símbolo de um mundo condenado ao
desaparecimento:

Eu sou sargento da Polícia Militar do Estado de Sergipe. Não sou nada, eu sou é Getúlio. (…) Eu não sou é
nada.

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