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Viva o povo brasileiro, de João Ubaldo Ribeiro

by Lucas Gomes

Análise da obra

Viva o povo brasileiro

é um romance histórico escrito por João Ubaldo
Ribeiro e publicado em 1984. A narrativa percorre quatro séculos da história
do País. Em suas quase setecentas páginas, vemos da chegada dos holandeses à
Bahia, no século XVII, até os anos 70 do século XX, representados ficcionalmente.

Destinado a privilegiar os episódios que, ao longo dos séculos, vieram consolidando
a famosa Irmandade do Povo Brasileiro (invasão holandesa, Independência, Farrapos,
Guerra do Paraguai, Abolição, República, Canudos), a cronologia vai de 1647
a 1977, mas através de distribuição irregular: há apenas um episódio para os
anos de 1809, 182I, 1826, 1836, 1839, 1841, 1842, 1853, 1865, 1869, 1870, 1896,
1889, 1898, 1939, 1972 e 1977; dois episódios para 1647, 1822 e 1897; três para
1846 e 1866; quatro para 1863 e 1871; finalmente, doze para 1827, que se toma,
assim, o momento central ou o eixo em tomo do qual todas as cenas se articulam
– e, com elas, a fascinante história da Irmandade do Povo Brasileiro vista pelo
prisma certamente deformante do populismo e do nacionalismo.

A construção da identidade é tema central em Viva o povo brasileiro.

O título, insolitamente exclamativo, a despeito da ausência do convencional
sinal de pontuação (!), alude não a alguma individualidade marcante, na tradição
retumbante do romance histórico tradicional, mas a uma entidade imprecisa, o
“povo brasileiro”. Essa personagem¸ precisando de atributos personalizadores,
ganha, em troca, acentuada liberdade face a condicionamentos espácio-temporais,
mantendo-se permanentemente disponível para a contínua construção de sua identidade.

Grande parte da história de Viva o povo brasileiro, se passa em Itaparica.
Ubaldo, que costuma citar moradores da ilha em suas crônicas, fala, no livro,
sobre a construção da identidade do povo brasileiro. É na ilha que nasce a heroína
Maria da Fé, que desafia o poder dominante para fazer parte, ao lado de outras
mulheres e homens, da Irmandade do Povo Brasileiro. É ela que surpreende a todos
ao aparecer no enterro de seu avô, com disfarce de capitão, desafiando o Exército.

A relativa concentração espacial, na Bahia (em particular na Ilha de Itaparica),
de onde partem ou para onde voltam as diversas personagens, é redução metonímica,
sem dúvida, mas não invalida o expansionismo do título, pois se trata de modelo
em escala que reafirma a integridade do “povo brasileiro”. Ademais, a eleição
da Bahia acaba por não ser tão arbitrária, se lida a partir de certos códigos
de brasilidade, como o que aponta aquele locus privilegiado como berço da nação
brasileira. E tal concentração espacial é compensada por uma inusual distensão
temporal: os três séculos de história são trabalhados não linearmente, mas aos
saltos, de modo a, sem elidir de todo a cronologia dos acontecimentos, estabelecer
vivo contraponto temporal: o ir-e-vir do foco narrativo dá-se, não de um espaço
para outro, mas de um tempo para outro. Essa desarticulação da linearidade cronológica
impõe uma leitura que minimiza as relações de causalidade aparente em favor
de uma percepção circular, abrangente, rigorosamente em consonância com a indicação
do título: trata-se não da estória de um indivíduo cuja vida se pautasse pela
mecânica inexorável do ciclo nascimento-vida-morte, mas da “vida” em constante
devir de todo um povo, por isso isento do fatalismo da morte biológica.

É considerada uma das mais importantes obras da literatura brasileira. Apresenta
histórias inspiradas nas raízes do povo brasileiro, tendo como personagens negros
e índios, portugueses e holandeses. Porém o livro não se trata de uma exaltação
à história brasileira e sim uma recontagem crítico-satírica da mesma, denunciando
a devassidão presente no processo de formação do povo brasileiro.

Incorporando fragmentos de toda sorte de documentos orais e escritos, Viva
o povo brasileiro
se integra à vertente de nosssa literatura que tentou,
pela via do épico, explicar a nossa formação cultural e exaltar os “heróis de
nossa gente”.

O livro é, senão, a saga de um povo em busca de sua identidade e afirmação.
A cultura e os costumes do Nordeste servem para o autor criar um romance épico,
em que a população do Recôncavo Baiano vira metáfora do povo brasileiro. Apesar
da consagração de Sargento Getúlio, é em Viva o Povo Brasileiro que João
Ubaldo Ribeiro reforça sua obra como uma das mais significativas e atuantes,
do ponto de vista estilístico e político, da Literatura Contemporânea Brasileira.

O narrador de Viva o povo brasileiro discute temas sobre a identidade
nacional utilizando a paródia. Se a paródia é a produção de um texto baseado
em um outro que ele nega, logo os temas nesta obra funcionam como uma grande
paródia da brasilidade. Enquanto “ninguendade” é uma forma do brasileiro se
identificar com o mundo por não se definir enquanto povo, o romance Viva o povo
brasileiro (1984) demonstra que o povo brasileiro, através da Irmandade e da
Canastra no século XIX, já tinha consciência de sua existência política e cultural.

A linguagem de João Ubaldo é sempre bem humorada, envolvente, surpreendente.
O autor descreve com habilidade os sentimentos e motivações de personagens tão
díspares quanto os holandeses exploradores do século XVI, índios canibais, escravos
de engenho, poderosos oligarcas, religiosos, funcionários públicos e políticos,
entre outros. São dezenas de personagens, numa história fascinante e bem contada,
que anda junto e é coerente com a História do Brasil, inclusive suas incoerências
e injustiças.

Viva o povo brasileiro inicia-se com uma descrição pitoresca da morte
do alferes Brandão Galvão. Somos informados de que o alferes vai morrer na flor
da mocidade, sem mesmo ainda conhecer mulher e sem ter feito qualquer coisa
de memorável. Também tomamos conhecimento do quadro “O Alferes Brandão Galvão
Perora às Gaivotas”, em que o personagem é representado franciscanamente como
um mártir.

Ao longo do capítulo, descobrimos que Brandão Galvão é um pescador adolescente,
apelidado de alferes pelos companheiros de reuniões políticas, cujo tema mal
conseguia compreender. O episódio de Brandão Galvão inicia um procedimento que
vai perpassar todo o romance: o contraste entre os fatos informados e a versão
elevada (muitas vezes completamente mentirosa) daqueles fatos. Esse tipo de
ironia, juntamente com alguns traços estilísticos como o exagero do tom e vocabulário
altissonantes, vão revelar o caráter paródico que o narrador empresta à fala
dos seus personagens, seja pelo discurso direto, seja pelo discurso indireto
livre.

É esse espírito irônico que encontramos nos episódios relacionados com um dos
principais personagens da primeira fase de Viva o povo brasileiro: Perilo
Ambrósio, o Barão de Pirapuama. Sabemos que o perfil heróico de Perilo Ambrósio
(bem como de outros personagens da classe dominante brasileira representados
no romance) é uma farsa completa, pois, para simular sua participação nos combates
pela independência do Brasil, Perilo Ambrósio mata um escravo, com cujo sangue
se lambuza e, para garantir que não seria desmascarado, corta a língua de outro
escravo. Fingindo aliar-se aos brasileiros por motivos patrióticos, aproveitando-se
da hostilidade entre brasileiros e portugueses, Perilo Ambrósio realiza sua
ambição e vingança: tomar a patrimônio de sua família, que era portuguesa. Contudo,
o que destaca Perilo Ambrósio de outros personagens do romance que também participam
de falcatruas é a sua representação grotesca: seu corpo extremamente gordo,
sua gula e sua voracidade sexual. Em contraste com a versão, cultivada por Perilo
Ambrósio e partilhada por grande parte da comunidade, sobre a sua grandeza de
caráter, tomamos conhecimento, logo no início do motivo baixo seu ódio à família:
Perilo Ambrósio fora duramente castigado pelo pai por ferir a irmã com um chuço
de assar, tentando tomar-lhe um pedaço de carne. Como conta o narrador, em discurso
indireto livre:

…jamais, agora que fora ingratamente magoado, existirá em toda a Terra
carne suficiente para matar a fome por aquele pedaço usurpado e arrancado à
força de seus dentes desesperados.

A representação física e psicológica da Perilo Ambrósio apresenta uma das mais
importantes características do grotesco: a hipérbole das partes do corpo e dos
atos que se relacionam com o baixo corporal.

Assim, o enredo, criado sob a perspectiva do negro, do índio e de seus descendentes,
conta a história de várias personagens, destacando os escravos, isto é, os excluídos
do processo de formação da identidade nacional.

Ubaldo Ribeiro exalta os “pequenos heróis” da nação, desenvolvendo uma espécie
de anti-história que se contrapõe à história oficial, captando assim as diversas
nuanças de brasilidade. Dessa forma, contribuiu para desestabilizar as estruturas
político-sociais que só viam no brasileiro o homem branco e os costumes do europeu.

Com uma linguagem apurada e alto nível satírico, o enredo fantástico de Viva
o Povo Brasileiro
mapea o caminho da busca pela identidade. O leitor seguirá
a história dos caboclos descendentes de Vevé, uma escrava violentada pelo branco
Perilo. Na luta contra os opressores, os caboclos são guiados pelo oráculo dos
deuses africanos com a ajuda da médium Inácia. O oráculo, repleto de mistério
e mensagens sinistras, antevê um assassinato. Júlio Dandão, Zé Pinto e Budião
criam a Irmandade da Casa da Farinha, que tem a incubência de vingar as injustiças
e crueldades perpetuadas contra os escravos. Nasce a filha de Vevé, chamada
de Dafé, a heroína do romance, que mata o irmão bastardo e segue sua sina no
combate aos opressores.

A personagem Dafé é apresentada como um ser humano movido por princípios morais
elevados, num momento em que toda a sua afetividade se manifesta em carinho
pelo seu avô. Nego Leléu representa o negro liberto que busca mecanismos para
vencer as dificuldades que a vida lhe apresenta. Torna-se comerciante e adota
Dafé como neta, educando-a e transformando-a no sentido de seu viver. Assim,
através dele, na obra, enxerga-se a possibilidade de o negro sair da condição
de escravo e alcançar uma função no mundo do trabalho livre.

A obra integra o erudito e o popular, o cômico e o histórico, o grotesco e o
soberbo, além dos rituais africanos e do canibalismo, em uma ficção ambígua
e engajada ao mesmo tempo, em que a metáfora do povo do Recôncavo Baiano e a
Ilha de Itaparica representam o Brasil e todo o seu povo.

“Neste romance inesquecível, ele proporciona ao leitor uma experiência enriquecedora,
um mergulho num Brasil que é ‘o nosso’, o de todos, o Brasil do misterioso,
vibrante, escondido – atraente porque distante e, ao mesmo tempo, fascinantemente
próximo” – antecipa o prólogo do livro.

Comentário de Alcmeno Bastos sobre a obra Viva o povo brasileiro
Nota: Alcmeno Bastos é Professor e Coordenador do Programa de
Pós-Graduação em Letras Vernáculas da Universidade Federal do Rio de Janeiro

As personagens que, consciente ou inconscientemente, constróem ou tentam construir
suas respectivas identidades repetem, no plano individual de suas existências,
o jogo de forças que preside, no plano coletivo, o processo histórico em que
estão inseridas. A verdade e/ou a mentira são os elementos de sustentação dessas
identidades. Para demonstrá-lo, deteremos nossa atenção em quatro delas, pertencentes
a um e a outro dos grupos postos em cena: os vencedores e os vencidos, como
tal entendidos os que ocupam, de berço ou por elevação social, os lugares mais
vantajosos – os primeiros -, e os que são relegados às posições desfavorecidas
– naturalmente, os últimos.

Cabe aos vencedores trabalharem a mentira de modo ardiloso, logrando fazê-la
passar por seu contrário. Tal transformação é possível com o emprego reiterado
da fraude. O primeiro deles a entrar em cena, Perilo Ambrósio Góes Farinha,
futuro Barão de Pirapuana, por exemplo, forja sua reputação de “herói da independência”
invertendo os sinais de sua participação na luta: foge dos combates.

Nem mesmo o som da batalha chegava-lhes agora como antes, embora antes tampouco
houvesse o retumbo tremendo que esperavam. Perilo Ambrósio, que escolhera aquele
ponto bem distante da luta para passar o dia, pois aguardava somente que vencessem
os brasileiros para juntar-se a eles, temia que o combate não tivesse terminado
ainda e que, por azar, fosse obrigado a tomar parte nele.
(RIBEIRO: 1984,
23)

Mas se apresenta como destemido guerreiro, o braço esquerdo numa tipóia empapada
de sangue, assim como o jaleco e a camisa
(RIBEIRO: 1984, 25), sangue, na
verdade, tirado do negro Inocêncio, a quem Perilo “sangrara à faca” para lambuzar-se
“e assim apresentar-se ao tenente” (RIBEIRO; 1984, 27):

– Meu comandante, vinte almudes de sangue tivera, todos os vinte os daria
gostosamente, e mais os tivera que os daria pela liberdade – respondeu Perilo
Ambrósio, com a voz débil e cortada de ofegos lacrimosos.
(RIBEIRO: 1984,
25)

E ao responder à pergunta do tenente, quanto à sua nacionalidade portuguesa,
renega-a despudoradamente:

– Sim, meu comandante, foi Portugal onde primeiro vi a luz e entre portugueses
fui criado, pois que o são meu pai e minha mãe, como hão de ser também os vossos
maiores. Mas, se lá vi a luz, cá no Brasil foi que vi a vida e, se falo desta
maneira, isto se deve aos que forcejaram desde sempre por meter-me na cabeça,
eis que até aos estudos na Corte quiseram enviar-me, não houvera lutado para
não formar-me em meio aos inimigos da liberdade e da Independência.
(RIBEIRO:
1984, 25)

A vilania de Perilo Ambrósio completa-se com o ato covarde de silenciar para
sempre a outra testemunha, o negro Feliciano, cortando-lhe a língua. Tempos
depois, misturado aos heróis autênticos, o agora barão recebe, como eles, o
reconhecimento da pátria, que lhe dá patrimônio e fazendas ricas, medalhas
e pensões, títulos e concessões, comendas e cargos vitalícios, benesses mais
fartas e generosas que a própria terra bendita sobre a qual se desdobrava agora
o manto da liberdade.
(RIBEIRO: 1984, 33)

Deste modo, mentindo contínua e deliberadamente, Perilo Ambrósio fabrica para
si a estátua viva de um notável da pátria recém-libertada. Tanto quanto ele,
outras tantas notabilidades certamente nasceram da subversão da verdade histórica,
corrompendo o panteão da nacionalidade com tão falso heroísmo. Tanto quanto
ele, outros tantos não hesitaram em aproveitar-se do momento histórico, deve-se
deduzir. E são exatamente esses que trabalharam a versão da História que mais
convinha aos seus interesses os que se logram sagrar-se vencedores em Viva
o povo brasileiro
.

Contudo, a mentira ardilosa não consegue perpetuar a vitória se outra mentira,
ainda mais ardilosa, a ela se superpõe. Assim é que, de modo bem mais requintado,
como que a atestar o “progresso” dos métodos fraudulentos com que se forjam
as identidades para reconhecimento público, o mulato Amleto Ferreira, guarda-livros
do barão, também ascende ao grupo dos vencedores por dois caminhos paralelos
e complementares. Em primeiro lugar, acumula fortuna material, desviando, para
seu armazém, mercadorias de propriedade do barão, traindo-lhe, portanto, a confiança,
até apossar-se de todos os seus bens, após sua morte. Magnânimo, ampara a viúva,
agora pobre, numa ação que decerto enobrecerá sua biografia para efeito externo.
Combinam-se nele duas “qualidades” estimadas no círculo dos vencedores: a ambição,
indispensável aos fortes e vitoriosos, e a generosidade com os que foram feridos
pela má sorte, hábil construção destinada a amortecer o conflito inerente ao
encontro de vencedores e vencidos. Mas a grande cartada, e esse é o segundo
caminho percorrido por Amleto, consiste em ratificar a ascensão econômica –
de simples guarda-livros a poderoso capitalista – mediante a fabricação de uma
ancestralidade expurgada da indesejável mancha de inferioridade racial devida
à herança negróide. Amleto agrega ao nome, valendo-se de uma certidão de batismo
falsa, um imponente e eufônico complemento, passando a assinar “Henrique [Nobre] Ferreira-[Dutton]”. Sem constrangimento declina sua suposta ascendência:

Meu nome, por exemplo, é Amleto, escolhido por minha mãe em homenagem a meu
pai; Henrique é pela velha tradição de casas reais de Inglaterra – Henrique,
Jorge, Carlos, Guilherme, Eduardo e assim por diante -; Nobre porque este é
sempre o terceiro apelido de nossa família portuguesa e, finalmente, Ferreira-Dutton,
que é o nome correto da nova família, resultado da união anglo-portuguesa.

(RIBEIRO: 1984, 234)

Com essa manobra cartorária, como que num passe de mágica, nada mais resta da
obscura origem que o próprio Amleto antes não sabia explicar, como se vê no
diálogo-interrogatório abaixo, travado com o cônego D. Araújo Marques, em seus
tempos de apenas Amleto Ferreira:

– Como disseste que te chamas?

– Amleto Ferreira, para servir ao Monsenhor.

– É nome cristão? Amleto, nunca ouvi.

– Tem origem numa lenda inglesa, segundo sei, num poema ou tragédia inglesa.

– Numa tragédia inglesa, num poema? Temos aqui coisa, então temos coisas! A
Inglaterra é excessivamente benévola para com os poetas e as artes frívolas.
Se também tivesse músicos, estaria perdida. Então teus pais são leitores de
livros profanos ingleses, é assim? Que livros são esses?

– Não sei bem, Monsenhor, o meu pai é inglês.

– O teu pai é inglês? Mas temos coisa, temos mesmo coisa! Mas és pardo, não
és? Não mais vigoram as ordenações que vedavam aos pardos as funções públicas,
podes falar sem susto, que depois de bem servires ao Senhor Barão, poderá arrumar-te
ele um bom cargo de meirinho ou, quem sabe, almocreve da freguesia, para que
passes a velhice à farta e sem nada fazer, ha-ha! E onde está esse teu pai inglês,
que faz ele?

– Vive na Inglaterra, não temos notícias há muitos anos. (RIBEIRO: 1984,
65-66)

A ascensão da Amleto, seu resgate do grupo dos vencidos, é tanto mais admirável
por resultar de ações perpetradas por ele mesmo, como que a demonstrar que,
apesar da origem humilde, qualquer um pode elevar-se à altura dos homens “notáveis”.
Naturalmente, pouco importam os métodos, mas é interessante constatar que a
fraude econômico-financeira não basta para assegurar-lhe o reconhecimento público.
A fraude étnico-social impõe-se como corolário natural. É indispensável apagar
as marcas que ainda restem da origem “inferior”. O próprio Amleto só se sente
legitimamente um dos vencedores quando contempla a certidão de batismo falsa,
muito embora o peso de sua fortuna já lhe assegurasse ficar livre dos dissabores
reservados aos vencidos. Está agora armado de uma prova material, frágil pedaço
de papel, é verdade, entretanto instrumento tão poderoso quanto os bens materiais
que acumulara até então. A mentira fez-se verdade pela fraude, mas depende da
hipocrisia de aceitar-se que um papel tenha maior poder de evidência que os
sinais de inequívoca descendência negróide. A estória de Amleto ilustra, no
plano individual, a pretensão coletiva das elites brasileiras de uma identidade
isenta do estigma da mestiçagem. Não é de surpreender torne-se ele, Amleto,
ferrenho defensor dos valores da cultura a que almeja pertencer – a dos vencedores
brancos:

(…) Mas, vejamos bem, que será aquilo que chamamos de povo? Seguramente
não é essa massa rude, de iletrados, enfermiços, impaludados, mestiços e negros.
A isso não se pode chamar um povo, não era isso o que mostraríamos a um estrangeiro
como exemplo do nosso povo. O nosso povo é um de nós, ou seja, um como os próprios
europeus. As classes trabalhadoras não podem passar disso, não serão jamais
povo. Povo é raça, é cultura, é civilização, é afirmação, é nacionalidade, não
é o rebotalho dessa mesma nacionalidade. Mesmo depuradas, como prevejo, as classes
trabalhadoras não serão jamais o povo brasileiro, eis que esse povo será representado
pela classe dirigente, única que verdadeiramente faz jus a foros de civilização
e cultura nos moldes europeus – pois quem somos nós senão europeus transplantados?

(RIBEIRO: 1984, 244-245)

No pólo oposto, a verdade dos vencidos escorrega tenuemente ao longo dos três
séculos que a narrativa cobre. Vem sempre misturada com o descrédito que normalmente
cerca as práticas de sua difusão, sumariamente rotuladas, pelos vencedores,
de “crendice”. Uma atmosfera de misticismo cobre diversos momentos do relato,
com a clara anuência do narrador. Ao invés do naturalismo miúdo reservado à
construção da verdade dos vencedores, tem-se aqui uma forma de realismo poético
que não recusa sequer o fantástico. A dicção narrativa assume tom entre solene
e parodístico, valendo dizer-se que nem sempre fica claro o limite entre paródia
e “seriedade”, como no enigmático final da narrativa:

O sudeste bateu, juntou as nuvens, começou a chover em bagas e ritmadas,
todos os que ainda estavam acordados levantaram-se para fechar suas janelas
e aparar a água que viria das calhas. Ninguém olhou para cima e assim ninguém
viu, no meio do temporal, o Espírito do Homem, erradio mas cheio de esperança,
vagando sobre as águas sem luz da grande baía.
(RIBEIRO: 1984, 673)

O grande símbolo da verdade calada dos vencidos – e com ela é possível corroborar
a intencionalidade do revestimento difuso que o narrador dá a essa verdade reprimida
– é, sem dúvida a Irmandade. Em nenhum momento do relato, seja através de uma
personagem, seja pelo recurso da onisciência do narrador, tal Irmandade é definida
com exatidão. Na cena em que Júlio Dandão faz uma explanação a Budião, Feliciano
e Zé Pinho sobre a Irmandade e a canastra, por exemplo, o tratamento narrativo
embaralha as marcas do real e do fantástico:

(…) enquanto falava entre seus rolos de fumaça Dandão ficou maior, muitíssimo
maior, mais alto do que a casa que o continha, ficou de todas as cores e expressões,
ficou até transparente, ficou úmido como o entrepernas de uma mulher e sabido
como a raiz de árvore, ficou uma verdadeira paisagem. E então soltou de vez
a tampa, que voltou a escancarar-se pendulando até achar sua posição, e de lá
principiou a puxar segredos, um segredo atrás do outro, cada qual mais maioral,
havendo quem afirme terem sido libertados inúmeros espíritos de coisas, maneiras
de ser, sopros trabalhadores, papéis que não se podia ver com os dois olhos
para não cegar, influências aéreas, as verdades por trás do que se ouve, sugestões
inarredáveis, realidades tão claras quanto o imperativo de viver e criar filhos.

(RIBEIRO: 1984, 211-212)

Aquele que, ao nível do enunciado, teria sido o momento inaugural da Irmandade
é poetizado através de retórico distanciamento do narrador, que finge não avalizar
seu próprio relato, limitando seu conhecimento do objeto de que fala e assim
conferindo maior impersonalidade ao que diz, fazendo-se voz coletiva.

(…) Foi também tudo muito sonoroso, tão melódico que nada mais se escutou
dentro da casa da farinha, dizendo uns que ali, naquela hora, se fundou uma
irmandade clandestina, a qual irmandade ficou sendo a do Povo Brasileiro, outros
dizendo que não houve nada, nunca houve nada, nunca houve nem essa casa dessa
farinha desse engenho desse barão dessa armação, tudo se afigurando muito labiríntico
a cada perquirição. Enquanto Júlio Dandão vai aos poucos catando na canastra
o que vai mostrar e vai exibindo alguma coisa e explicando outra, essa Irmandade
talvez esteja se fundando, talvez não esteja, talvez tenha sido fundada para
sempre e para sempre persista, talvez seja tudo mentira, talvez seja a verdade
mais patente e por isso mesmo invisível, porém não se sabendo, porque essa Irmandade,
se bem que mate e morra, não fala.
(RIBEIRO: 1984, 212)

Percebe-se aí a natureza abstrata da Irmandade, apenas um vínculo imaterial
a garantir a união do Povo Brasileiro, espécie de consciência inconsciente –
em outros termos, a brasilidade. Além do distanciamento – retórico, porque fingido,
dado que o narrador simpatiza claramente com a versão dos que asseguram ter
sido criada ali, na casa das farinhas, uma irmandade clandestina -, o jogo do
talvez contribui fortemente para negar forma definida à Irmandade. É significativo
o contraste entre a formação da Irmandade, apresentada com reservas quanto á
sua veracidade pelo próprio narrador, ainda que reservas retóricas, insistamos,
a ponto de caracterizá-la como “talvez a verdade mais patente e por isso mesmo
invisível”, e o apego à chancela cartorária com que os vencedores constróem
suas verdades, de que é exemplo, além da já mencionada certidão de batismo falsa
comprada por Amleto, o estudo sobre os Ferreira-Dutton feito pelo British-American
Institute for Genealogical Research
(RIBEIRO; 1984, 641) com que busca Amleto
oficializar, com rigor “científico”, sua mentirosa ancestralidade não-negróide.

A mentira que se faz passar por verdade – a dos vencedores – precisa ancorar-se
na verossimilhança. São-lhe indispensáveis as encenações sociais, os documentos
falsificados, os recibos por pagamentos não feitos, os estudos genealógicos
encomendados a instituições respeitáveis, e respeitáveis sobretudo por serem
estrangeiras, enfim, todo o aparato de exterioridades cuja amplificação paradigmática
é a própria História oficial. Por outro lado, a verdade que se deixa confundir
com a mentira – a dos vencidos – constrói-se descompromissada com o documentalismo,
avessa a certidões, e é transmitida oralmente, sempre de modo precário e restritivo:

– Estes segredos – disse [Júlio Dandão] sem tirar a mão da tampa – são parte
de um grande conhecimento, conhecimento este que ainda não está completo, mesmo
porque nenhum conhecimento fica completo nunca, faz parte dele que sempre se
queira que ele fique completo. E faz parte dele também, por ser segredo e somente
para certas pessoas, que cada um que saiba dele trabalhe para que ele fique
completo. Se todos trabalharem, geração por geração, este é o conhecimento que
vai vencer.
(RIBEIRO: 1984, 211)

A narrativa se flexibiliza em dicções diferentes para manter-se fiel às duas
naturezas conflitantes da verdade e da mentira. Essa duplicidade de tratamento
dispensado à matéria ficcional inscreve-se num projeto mais abrangente, qual
seja o de corroer a versão oficial da identidade brasileira. Como essa versão
oficial sustenta-se principalmente pelo documentalismo, pelo peso da verdade
escrita e impressa, o narrador veicula a verdade dos vencidos – autêntica, no
seu entender – com as ambigüidades inerentes aos processos alternativos de transmissão,
e mesmo de constituição, do saber. A canastra, por exemplo, na qual estariam
guardadas as marcas da verdade do Povo Brasileiro, é tratada ao longo do relato
como objeto mágico, diferentemente da certidão de batismo falsa de Amleto, objeto
mentiroso em sua origem espúria, mas legítimo em relação aos efeitos que produz,
e verdadeiro em sua materialidade. Fica patente que apenas em termos simbólicos
a verdade invisível contida na canastra poderia ficar sob a guarda de alguém,
de vez que a natureza incompleta da verdade, como o dissera Júlio Dandão, exigiria
trabalho permanente de construção: Se todos trabalharem, geração por geração,
este é o conhecimento que vai vencer.
(RIBEIRO: 1984, 211)

Patrício Macário, o filho caçula de Amleto, é a personagem que transita do mundo
da mentira, isto é, do mundo dos vencedores, para o mundo da verdade, isto é,
para o mundo dos vencidos – percurso simetricamente inverso ao do pai. Exemplarmente,
é a ele que cabe, na condição de elemento de ligação, ser o último depositário
da canastra. Parece existir aí, de parte do narrador, a intenção de mostrar
que a identidade do homem brasileiro deve ser mediada pela extinção dos antagonismos,
não de modo “cordial”, isto é, à custa de calar-se a verdade dos vencidos, como
em Amleto, mas por um audacioso mergulho no espaço fascinante dos vencidos.
Patrício Macário renega suas origens e chega mesmo a partilhar com os vencidos
algumas de suas práticas. Consuma sua imersão ligando-se a Maria da Fé, um dos
mais legítimos representantes do universo dos vencidos. Patrício Macário, na
verdade, já cumpria papel contestador lá no seu mundo de origem, e era mal visto
pelo próprio pai, sobretudo pela evidência de sua condição de mestiço. Amleto,
solertemente, transfere para a família da mulher a herança racial indesejada:

(…) – Em segundo lugar, dir-se-ia que Patrício Macário, nos traços fisionômicos
e no temperamento, terá puxado – e digo isso sem desdouro, pois sou orgulhoso
de minhas raízes brasileiras, ainda que por via matrimonial – ao lado brasileiro
da família de Dona Teolina. (…) O resultado é aquela aparência acaboclada,
aquela pele tisnada e quem sabe aqueles modos rudes e praticamente indomáveis.
(RIBEIRO: 1984, 337)

Incômodo aos planos de fidalguia do pai, Patrício Macário é, por isso mesmo,
punido: Amleto o manda para o Exército, onde fará carreira, chegando à patente
de general. E para narrar o seu envolvimento com o mundo de Maria da Fé, a linguagem
do narrador franqueia o texto ao poético e aceita francamente o inverossímil.
O romance entre Patrício Macário e Maria da Fé, ligação que fora prevista por
Zé Popó, enquanto “cavalo” do caboco Sinique, acontece sem manobras de conquista,
sem quaisquer urdiduras, como fatal efetivação de desígnio superior à vontade
de ambos.

E nem se admirou quando, levantando o rosto, deparou-se com a figura alta
de Maria da Fé, diante dele tão bonita quanto a vira antes, os olhos verdes
refletindo a luz das fogueiras, a cabeça emoldurada pelo capuz descido. Então
era isto, sim, era isto, estava tudo muito claro, nada requeria explicações,
tudo deslumbrantemente claro, e ele estendeu a mão para ela, que o ajudou a
levantar-se.
(RIBEIRO: 1984, 411)

Superior à vontade de ambos é também o fato de Maria da Fé, a despeito de muito
amar Patrício Macário, deixá-lo para cumprir sua missão libertadora. Marcado
por esse encontro, Patrício Macário deixará de vez o convívio citadino, as galas
mundanas, os privilégios da carreira e se refugiará em Itaparica, em busca da
magia do tempo vivido com a mulher amada. Quanto mais Patrício Macário se aproxima
do mundo dos vencidos, incorporando suas práticas – a revelação mística, por
exemplo -, mais se distancia do mundo dos vencedores, e como o afastamento é
deliberado, Patrício Macário torna-se ele mesmo um dos vencidos. Seu discurso
final, quando recebe homenagens pelos cem anos de vida, é uma decidida profissão
de fé no “povo brasileiro”. Como coroamento da poetização do relato nos momentos
em que Patrício Macário penetra o mundo dos vencidos, seu encontro com o filho,
Lourenço, encontro promovido por Rita Popó, é trabalhado de modo a deixar ambíguo
o próprio fato narrado, pois bem poderia ter sido apenas alucinação provocada
pela ingestão do escaldado de baiacu servido no almoço. O narrador o sugere,
aliás:

– Estamos mortos? – perguntou depois de erguer o tronco num mundo tornado
absolutamente silencioso, onde sua voz era o único som no ar.

Rita Popó voltou-se e ele percebeu que ela também não sabia se estava morta
ou não.

– Não sei – disse ela – Talvez um pouco, talvez muito.

– Estamos sentados ou deitados?

– Não sei. Eu me sinto um pouco boiando.

(…)

– Será que os outros estão também assim? É também possível que estejamos sonhando
juntos? Estamos sonhando juntos?

– Podemos estar sonhando juntos.

Ele a viu levantar-se, não como alguém que se ergue mas como se desdobrasse
articulações diferentes das normais, deslizar até a porta e sair, sem que pudesse
verificar se ela realmente a abrira ou desaparecera através da madeira. Pensou
em fazer o mesmo, sentiu-se girar no ar como uma folha carregada pelo vento,
viu-se também articulado de maneira esquisita, mas logo notou que podia ir até
a porta se quisesse. Contudo, não chegou a saber se a atravessaria, porque ela
se abriu devagar e Rita Popó entrou, acompanhada de um homem moreno e alto,
cujos traços o fizeram estremecer.
(RIBEIRO; 1984, 604-605)

No final do capítulo, os objetos que Lourenço dera ao pai, lembranças deixadas
pela mãe, Maria da Fé, vão aparecer na casa do general Patrício Macário, sem
que a empregada da casa saiba como tinham ido parar ali. Assim não se “explica”,
para o leitor, se se tratara de alucinação, com que se devolveria ao relato
a desejável taxa de verossimilhança, ou se mágico traslado, por decisão de alguma
potência sobrenatural. Também a “verdade” que emerge das palavras de Lourenço,
pois sua fala tem nítido valor doutrinário, em curiosa inversão da hierarquia
familiar: o filho ensina ao pai, é nebulosa, a começar pela confirmação da morte
de Maria da Fé nestes termos:

…pois morrera, sim, morrera, embora ninguém soubesse como, porque, já bem
velha embora forte, um dia desaparecera, depois de ter apenas saído sozinha
num barco, pelo mar em redor das escabras da Ponta de Nossa Senhora.
(RIBEIRO:
1984, 606)

Maria da Fé é, aliás, a personagem de contornos menos nítidos em Viva o povo
brasileiro
. Mesmo ela tem dúvidas sobre sua própria existência:

– Tu sabes – disse ela, muito baixinho, olhando para o lado -, eu mesma às
vezes penso que não existo, penso que sou uma lenda, como dizem que sou. E tu,
no futuro, talvez venha a pensar assim também, a pensar que sou uma lenda.

(RIBEIRO: 1984, 512)

Sua idade é imprecisa, pois nasceu num dia 29 de fevereiro, e essa circunstância
de calendário, fortuita em princípio, se estende ao plano da existência concreta:
Maria da Fé envelheceria mais lentamente que os demais, e alcança sua relação
amorosa falha com Patrício Macário. O fato de ser mestiça, de “olhos verdes”,
ter uma coragem incomum, aliando na mesma pessoa perturbadora beleza física
ao destemor e à lucidez, tudo em Maria da Fé torna-a depositária por excelência
das verdades dos vencidos. O aspecto lendário, na fronteira débil entre o verídico
e o inventado, faz dela, dentre todas as personagens, a perfeita ilustração
da integridade da verdade que Viva o povo brasileiro intenta resgatar:
a verdade que não se encontra nos escritos, nos documentos prestigiados dos
vencedores, mas que habita o coração: a verdade “invisível” de que falava Júlio
Dandão.

Portanto, as discrepantes naturezas da mentira e da verdade são mostradas não
apenas no nível do enunciado, nas falas e no comportamento das personagens,
mas integram-se à estrutura da narrativa, no nível da enunciação. A construção
das verdades que sustentam as personagens de Viva o povo brasileiro faz-se
pela inversão do senso comum: verdadeiro não é o que está documentado, nem o
que o narrador conta de acordo com a lição tradicional da verossimilhança, nem
mesmo o que se explica satisfatoriamente pela razão. Verdadeiro é o que atravessa
a consciência, mesmo que mal formada, com a força mágica da subversão. Talvez
seja mesmo mais apropriado dizer-se que verdadeiro é o que perpassa o inconsciente,
não fora a circunstância de que, em alguns momentos, pela explicitação excessiva
deixada na fala de uma ou outra personagem, ou pela nitidez contestadora da
epígrafe: “O segredo da Verdade é o seguinte: não existem fatos, só existem
histórias”, o romance se aproxima perigosa e lamentavelmente da tese. Todo um
capítulo – “Arraial de Santo Inácio, 29 de fevereiro de 1896” – é destinado
a uma espécie de resumo do romance inteiro, com a presença em cena de um cego,
Faustino, que, de passagem para Canudos, conta, para uma platéia contrita e
atenta, uma história que era de fato comprida, porque começava quando o mundo
foi feito, antes do descobrimento do Brasil
(RIBEIRO: 1984, 514), e chegava
até Maria da Fé. Por si, este capítulo redundante embute certa desconfiança
do narrador na capacidade de compreensão do leitor quanto ao sentido da narrativa,
pois concentra em oito páginas o que se espraia pelas restantes 665, tornando
acessível a “mensagem” de contestação da verdade dos vencedores. Além disso,
o cego Faustino discursa veementemente contra a História oficial, escrita, reduzindo-a
a manipulação dos poderosos:

Mas, explicou o cego, a História não é só essa que está nos livros, até porque
muitos dos que escrevem livros mentem mais do que os que contam histórias do
Trancoso. (…) toda a História é falsa ou meio falsa e cada geração que chega
resolve o que aconteceu antes dela e assim a História dos livros é tão inventada
quanto a dos jornais, onde se lê cada peta de arrepiar os cabelos. Poucos livros
devem ser confiados, assim como poucas pessoas, é a mesma coisa.

Além disso, continuou o cego, a História feita por papéis deixa passar tudo
aquilo que não se botou no papel e só se bota no papel o que interessa. (…)
Então toda a História dos papéis é pelo interesse de alguém. (RIBEIRO; 1984,
515)

Verdadeiro, por fim, é o que o narrador relata deixando livre campo à ambigüidade,
alterando sua dicção para um discurso menos prosaico e mais poético. Trata-se,
sem dúvida, de um voto de desconfiança nos procedimentos oficiais e consagrados
da construção de identidade, individual ou coletiva, este romance que, já no
título, alude não a um herói particularizado, mas à entidade nacional do “povo
brasileiro”.

RIBEIRO, João Ubaldo. Viva o povo brasileiro. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1984. Todas as citações de texto foram feitas com base
nesta edição, com indicação, entre parênteses, das páginas correspondentes.

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