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Às portas do futuro

by Lucas Gomes


Stevens Rehen, pesquisador do Instituto
de Ciências Biomédicas da UFRJMétodo que transforma células adultas em pluripotentes balança os alicerces da ética

SÃO PAULO – Tem gente que conversa com plantas. Stevens Kastrup Rehen gosta de conversar com células. Pelo
menos é o que parece quando fala dos próprios estudos com células-tronco embrionárias na UFRJ. “Você
precisa dizer para essas células que elas devem se transformar em neurônio, não em célula do coração, por
exemplo.” A questão é achar a linguagem ideal, o tal “coquetel de fatores”, para a interlocutora seguir a
profissão que o cientista quer.

É o mesmo desafio que aponta para os cientistas japoneses e americanos que publicaram, nessa semana, o
trabalho sobre a produção de células pluripotentes a partir de células da pele. O estudo provocou um auê
porque parecia implicar a demissão irrevogável de embriões ou óvulos. Uma célula adulta seria reprogramada
para formar qualquer tecido do organismo. Haveria outro curinga no laboratório. Stevens acha que a técnica
vem para somar, não para dividir. Ele lembra que Thomson, o cientista americano, só chegou a esse resultado
porque usou células-tronco embrionárias numa das etapas.

De uma família potencialmente plural, com raízes franco-alemãs, dinamarquesas, gaúchas e baianas, esse
carioca de 36 anos quer é liberdade. Foi um princípio que cristalizou na pós-graduação em Ciências
Biológicas e Neurociências na UFRJ e no pós-doutorado na Universidade da Califórnia, nos EUA. “Precisamos
de todas as ferramentas para entender esse quebra-cabeça que é o corpo humano.” Na cabeça dele, não é um
libera-geral, mas um trabalho com responsabilidade e sob as vistas de comitês de ética. Mesmo porque a nova
técnica deve trazer à tona outros dilemas e desvios até agora impensáveis, que ele cogita a seguir.

Foi coincidência duas equipes de países diferentes usarem o fibroblasto para desenvolver células
equivalentes às embrionárias?

O fibroblasto é uma célula mais fácil de retirar do corpo e de manter em meio de cultura, mas as duas
equipes conseguiram seus respectivos fibroblastos de regiões diferentes do corpo. Thomson (James Thomson,
da Universidade de Wisconsin) utilizou fibroblastos derivados de fetos e do prepúcio de recém-nascidos.
Yamanaka (Shinya Yamanaka, da Universidade de Kyoto) preferiu células da pele de uma mulher de 36 anos e
do tecido sinovial do joelho de um homem de 69. O ponto é que usaram células diferenciadas. São de pele.
Não são do coração, não não são do fígado. E todas são adultas, mesmo as que vieram dos fetos, porque
estão comprometidas com um determinado jeitão, digamos assim.

As células de fetos estariam mais próximas da célula pluripotente?

Teoricamente, quanto mais jovem uma célula adulta, mais plástica ela será. A célula de feto seria mais
fácil de reprogramar do que uma que veio do joelho de um senhor. Mas o grupo de Thomson justificou sua
escolha com outro motivo: comprou essas células de feto de uma empresa. Isso faz com que eu, no Brasil,
possa adquirir a mesma célula para tentar repetir o processo. Em estudos de maior impacto, é importante
que outros grupos consigam reproduzi-los o mais rapidamente possível. Caso contrário, passa-se a questionar
se o trabalho é real. Yamanaka, de certa forma, já está consagrado, é pioneiro nessa história de
reprogramação. Foi ele quem usou a técnica com camundongos. Na verdade, quem lidera esses estudos é o
grupo japonês.

Parece que as células-tronco são a galinha dos ovos de ouro da ciência biomédica. É estranho que o grupo a
mericano disponibilize a célula para outros copiarem o estudo?

A técnica em si é o pulo-do-gato, não a célula. Não sei se Thomson já tentou entrar com um pedido de
patente, mas foi ele quem registrou o procedimento de geração de células-tronco embrionárias humanas.
Vários advogados nos EUA já conseguiram diminuir a abrangência da patente, mas, até poucos anos atrás,
pesquisadores como eu, que trabalharam com uma linhagem derivada por nós mesmos, tivemos de pagar US$ 5
mil para o escritório de Thomson só porque utilizamos a técnica que ele desenvolveu. Portanto, não dá para
dizer que haja benevolência e altruísmo pleno desse pessoal. Claro que, dessa forma, vão gerar mais
investimentos para os grupos deles. Isso também justifica a importância de o Brasil investir nessa área
porque, caso contrário, ficaremos presos a patentes e tecnologias desenvolvidas lá fora.

Os dois laboratórios têm grande liberdade de pesquisa nessa área. Isso fez diferença para chegarem à
vanguarda?

Há meia dúzia de laboratórios de ponta no mundo fazendo isso com liberdade e grande volume de dinheiro nos
últimos dez anos. Os resultados saem numa velocidade impressionante. Parece um seriado, cada hora um
capítulo diferente, com histórias maravilhosas. Thomson, por exemplo, descreve nesse artigo da Science que
utilizou células-tronco embrionárias humanas. Pegou uma, a diferenciou em célula de sangue e juntou vários
genes para chegar a um grupo que poderia provocar a reprogramação. Selecionou um portfólio de 14 genes e
então, numa nova triagem, chegou a uma combinação de 4. Ou seja, precisou das embrionárias para ter o
efeito da comparação com as células recém-criadas. Essa liberdade é essencial para que a mente consiga
viajar. A ciência precisa ser movida pela curiosidade. Se lhe dizem “você pode trabalhar até aqui, a
partir daqui não mais”, é como viver sob uma ditadura. A ciência vai sempre empurrar os limites do que
chamamos de ética.

Que questões éticas podem surgir com o desenvolvimento das células reprogramadas?

Podem surgir dilemas éticos muito mais complicados do que os que supomos agora. Hoje, temos condição de
transformar células-tronco embrionárias num espermatozóide ou num óvulo. Se essa célula reprogramada tiver
o mesmo potencial pluripotente, você pode muito mais facilmente transformar a célula da pele de um
indivíduo em um gameta também. Imagine uma pessoa que acabou de falecer. Se alguém lhe tirar um pedaço de
pele, pode-se criar um espermatozóide para fecundar uma mulher. Esse filho vai ter direito à herança da
pessoa que acabou de morrer? Não é um problema ético para mim, mas é bem provável que a sociedade debata
sobre um casal de homens que, por exemplo, quer um filho legítimo dos dois. Os pesquisadores podem pegar
uma célula da pele de um deles, transformá-la em óvulo e fecundá-la in vitro com o espermatozóide do
parceiro. Uma mãe solteira será capaz de ser literalmente solteira se pegarmos uma célula dela própria e a
reprogramarmos num espermatozóide. Depois bastaria fecundar a própria mulher.

É possível também reconstruir um órgão usando essas células? Corre-se o risco de as pessoas trocarem todas
as “peças” do corpo, independentemente de ter ou não uma doença?

Para essa célula virar um órgão, tem muita estrada. Pensamos mais em produzir células especializadas e
aplicá-las em órgãos do indivíduo. É o que se consegue vislumbrar num horizonte menos distante. O pessoal
consegue produzir, no máximo, uma bexiga, que é um pouco mais simples. Mas órgãos mais elaborados, como o
coração? Estamos muito longe disso. O cérebro, então… Há quem diga que é a estrutura mais complexa do
universo. Duas regiões do cérebro normalmente se renovam: o hipocampo, responsável pela memória de curto
prazo, e a zona subventricular, importante para formar os neurônios envolvidos com o olfato. O que pode
acontecer se colocarmos células novas no córtex, onde não há neurogênese natural? É uma avenida de
possibilidades, um exercício de futurologia.

O risco de rejeição é realmente zero quando se usa uma célula da própria pele?

Sim, e é uma de suas grandes vantagens. Como é a clonagem terapêutica? Você pega um óvulo de um doador, o
núcleo de outro e insere esse núcleo no óvulo. Ao fazer isso, ainda resta material genético no citoplasma
do óvulo do doador. Teoricamente, há risco de rejeição. Na nova técnica, tudo que foi usado é material
genético da própria pessoa, com exceção do vírus selecionado para fazer a reprogramação.

Dá para não usar o vírus?

Yamaka usou o retrovírus, que só infecta a célula se ela estiver se dividindo. Thomson optou pelo
lentivírus, que infecta as células estejam elas se dividindo ou não. Os dois funcionaram, mas seria ideal
não ter esse meio de caminho. Por quê? Porque esse vírus pode entrar em vários lugares do genoma. Yamaka
calculou que o retrovírus entrou em 20 locais diferentes, o que pode provocar uma mutação. Daí a célula
pode virar um tumor ou outra coisa que o pesquisador não deseje. Uma das células que Thomson derivou do
prepúcio de recém-nascidos não se transformou em neurônio, outras sim. Posso apostar que esse pessoal está
correndo atrás disso: conseguir fazer essa “infecção” sem a necessidade de um agente exógeno.

Nessa fase, o fato de a célula virar um tumor é necessariamente negativo?

Eles usaram a criação do tumor como um efeito benéfico, uma coisa positiva. A célula, para ser chamada de
pluripotente, tem que se transformar em um tumor se injetada sem preparação prévia num animal
imunodeprimido. O tumor é um descontrole da célula, que indica que ela tem potencial de pluripotência. É
claro que, num ensaio pré-clínico, você não vai injetar uma célula não preparada. Tem que usar um coquetel
de fatores informando que ela vai se transformar num neurônio, e não numa célula de fígado. Você não pega
uma célula sem explicar para ela o que tem de virar. Quando explica, praticamente extingue a chance do
tumor. Os primeiros ensaios clínicos do novo método devem ser feitos no ano que vem, mas tem muito estudo
pela frente. Aliás, é importante destacar que é preciso ter o mesmo cuidado com uma célula-tronco adulta.

Os cientistas dos dois grupos usaram dois genes iguais e dois diferentes. Isso significa que poderão usar
outros tantos?

Eles usaram quatro genes, dois idênticos. A primeira coisa impressionante é que conseguem com poucos genes
mudar a identidade da célula. Isso, obviamente, abre um gatilho para buscarem outros genes, outras
combinações que possam até facilitar a obtenção dessas células, pois a taxa de eficiência ainda é muito
baixa, de 0,02%. Começaram com 1 milhão de células para chegar a 200 reprogramadas, se bem que você pode
tirar quantas células de pele quiser sem problemas éticos. Essa é a grande vantagem desse experimento em
relação à clonagem terapêutica. Não se consegue 1 milhão de óvulos como se consegue 1 milhão de células de
pele. Daqui a um tempo, se for comprovado que são idênticas às embrionárias, você vai poder botar uma pá
de cal na clonagem terapêutica. Mas isso não pode ser feito agora, não é prudente, não é responsável.
Precisamos de todas as ferramentas, de todas as peças, das células-tronco embrionárias inclusive, para
entender como se forma o corpo humano.

Ian Wilmut, “pai” da Dolly, disse que vai abandonar a clonagem. É ruim para o meio científico quando um
dos papas do assunto resolve dispensar um estudo como esse?

Acho que a opinião dele é legítima. Você olha os resultados dos dois grupos e vê como foi teoricamente
fácil fazer isso diante da dificuldade de produzir as mesmas células usando a clonagem. É óbvio que
qualquer um, inclusive o papa, vai ter o impulso de falar o que falou. Agora uma coisa é ler uma
determinada informação, outra é tentar reproduzi-la no laboratório.

Quais são os países de ponta nessa pesquisa?

Parece uma situação esquizofrênica. O presidente americano é contra esse tipo de pesquisa, não investe e,
no entanto, seu país continua na ponta. Mas não é o único. Hoje tem Japão, Inglaterra, Austrália.
Cingapura, aliás, está investindo horrores. Eles criaram uma cidade que se chama Biópolis, onde só tem
cientista. A percepção do governo de Cingapura é a seguinte: o futuro está em pesquisa biomédica. Criaram
uma cidade para atrair empresas, gerar conhecimento e conseguir recursos que gerem mais dinheiro para o
país se desenvolver. Pagam a peso de ouro para irmos para lá. Tenho vários colegas no Brasil cogitando
essa hipótese.

Você também se sente tentado a ir para Cingapura?

Não. Voltei para o Brasil porque tenho vontade de contribuir com a pesquisa daqui. Isso me dá prazer, me
dá satisfação. Tenho amigos que estão nos EUA por opção e também devem ser respeitados. Estão lá porque
gostam de trabalhar com ciência de ponta, pensando no Nobel. Mas é claro que, às vezes, fico um pouco
decepcionado. Você chega aqui e tem problemas dos mais variados. Importar um reagente é um pesadelo. O que
levava cinco dias para importar nos EUA, aqui demora seis meses e eu pago três vezes mais. O material fica
preso na alfândega, o gelo seco acaba e você perde o que importou. Isso já aconteceu várias vezes comigo e
com um número absurdo de pesquisadores. De qualquer forma, o meu barato é ficar por aqui. Quero tentar
contribuir para que o Brasil diminua essa distância em relação aos países mais desenvolvidos.

Fonte: O Estado de S. Paulo

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